Textos dos criadores

6 jun 2011

Grace Passô
Gustavo Bones
Marcelo Castro
Paulo Azevedo
Renata Cabral
Samira Ávila

Grace Passô:

Comecei a pensar Por Elise há muito tempo, quando escrevi algumas situações que considerava teatrais, situações que, no meu ponto de vista, tocavam na natureza do teatro. A primeira situação escrita nessa peça, há muito, foi a de um lixeiro que encontrava seu pai que não via há anos, na rua, enquanto corria trabalhando. Olha um pedaço dos primeiros rascunhos:

Lixeiro: Pai?
Pai: Bom dia.
L:
P: Sou eu mesmo.
L:
P: Quanta saudade. (tenta se aproximar)
L: Não vem. (ouve-se GRITOS de outros lixeiros, apressando-o) Eu tenho que ir.
P: Espera.
L: O que o senhor quer? Eu tenho que ir, não está vendo?
P:. Você está crescido, é um homem.
L: É? (medo, desconfiança)
P:
L:
P: É, está. Porque não olha pra mim?
GRITOS DOS LIXEIROS
L: Eu tenho que ir.
P: E seus irmãos?
L: Estão bem. Está tudo bem.
P: E sua mãe? Eu tenho saudades dela também.
L:
P: Porque não olha pra mim?
L: (olha em seus olhos) Porque o senhor sumiu? Porque não te vejo há tanto tempo? Porque está aqui, me atrapalhando?
P:
L:
P: … Você… recebe o dinheiro que te mando para as aulas de inglês?
L:
P: Eu sempre quis falar inglês
L:
P: Tudo bem, eu te entendo. Eu não vou me justificar, o que você sente está no seu lado de dentro, muito do lado de dentro… E eu não posso te virar aos avessos. De qualquer forma eu queria muito encontrar com você nem se fosse pra ficar assim, em silêncio. Eu já estou bem feliz de te ver assim… forte, um homem forte..
L: Eu tenho que ir…
P: Espera. Eu sei que tem que ir. Aceita um cigarro?
L: Eu não fumo.
P: Graças a Deus.
L: Esse cigarro é o mesmo que o senhor saiu para comprar, anos atrás, e não voltou mais?
P: Não fala assim.

…  E assim se seguia a cena. Achei tão intenso isso de um lixeiro, enquanto trabalha, encontrar seu pai perdido em sua história…  e intuí que havia aí uma lógica poética. Depois comecei a escrever um discurso de uma Dona de Casa, que, assim como minha mãe, dizia coisas muito sábias de forma simples; uma senhora em que a sabedoria havia nascido em si pela experiência e pelo tempo. Intuindo que essa personagem seria uma espécie de narradora do que viria a ser uma peça, ela teria essa função de ter certo domínio da história, assim como têm os narradores. E também assim iam nascendo alguns outros personagens.

Tempos depois, desejei dirigir um espetáculo pela primeira vez e então esses escritos precisariam ser terminados. Quando nos reunimos apresentei o texto aos componentes do que viria no futuro a ser o que somos hoje: o grupo Espanca! No processo de construção do espetáculo muitas coisas foram mudadas no sentido de introduzir dramaturgicamente o texto na cena. Nesse processo várias modificações foram feitas para que o objetivo primário, que é o “espetáculo”, significasse uma única linguagem e obra artística.

Já no processo de construção da peça, o grupo se revelou não só como um grupo de atores mas também de criadores: a cada ensaio a concepção geral do espetáculo foi discutida e proposta conjuntamente, várias modificações foram propostas por todos, acrescentando a essa obra o fato que fazer uma peça de teatro é uma questão coletiva. E assim, em conjunto, demos origem ao espetáculo Por Elise.

Como diretora, acredito ter buscado uma encenação que surpreendesse a forma, sem perder de vista seu significado no discurso da peça. Buscado o “estranhamento” da forma sem vangloriar-se dele. Acredito também que foi um processo generoso, em que os cinco criadores se engajaram na construção de forma bonita.

E ainda, por minha vez, intuo que essa obra tenha uma qualidade muito especial: a inocência. A inocência da primeira direção, do primeiro texto encenado, a inocência da primeira obra de um grupo, o primeiro sopro em conjunto. Ai, que fresca é a primeira brisa da manhã.

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Gustavo Bones:

O QUE ME MOVE É A INTENSIDADE DA FÉ.

Quando começamos a ensaiar o espetáculo, Grace me pediu que fizesse um para-casa e, como ponto de partida, recebi um recadinho da senhora Elise: “Eu estava pensando e acho que o lixeiro pode ser um homem de fé. E gostaria que você fizesse uma cena com o título ‘O que me move é a intensidade da fé’”. Naquela época, inocente que era, eu não acreditava em Deus. Subestimava, prepotente que sou, a gigantesca força contida no menor ato de fé. Porém, ótima como de costume, D. Elise me preveniu: “Ter fé não é fácil como se pensa de maneira desavisada”.

E então comecei a correr… Corri porque havia uma ordem. Correr. Corri porque gritavam a todo instante pra eu não parar. Correr. Corri porque não havia outra coisa a fazer. Correr. Corri porque não sabia fazer de outro jeito. Correr. Corri porque D. Elise disse: corra! Corra! Corra! Correr. Corri porque precisava encontrar meu pai, onde estará meu Pai? Correr. Corri pra me esquecer do meu pai. Correr. Corri procurando um sentido em mim que basta. Correr. E esse sentido não chega! Correr. Correr procurando entender o porquê de tudo isso. Correr…

E corri tanto! Mas como corri… Até que um dia cansei. Cansei. Parei. Perguntei: correr pra quê? Correr pra onde? E aconteceu um instante. Um instante minúsculo. Um desejo inquestionável que não me deixou desistir. E recomecei a correr…

Dizem que momentos como este, tão infinitamente pequenos, estes instantes tão cansados da vida, esses átimos sem esperança, chamam-se Deus. Nesses mini-segundos, Ele nos dá uma pista, nos consola com a possibilidade de Sua existência. E a gente, carente que somos, larga tudo e volta a correr. Corre pra ver se era Ele mesmo. Dizem…

Foi “Por Elise” que me ensinou o nome desse desejo. Desse desejo de vida. Foi “Por Elise” que me ensinou, também, que o mais legal era procurar por Deus – e não encontrá-lo. Que encontrá-lo é só um pretexto pra recomeçar a correr. Deus é recomeço. Corremos na esperança de um dia revê-lo. Fé é esperança. Sou um homem de fé. E agora não quero mais saber se Deus existe. Quero saber é quem respira por Ele! Quem? Quem? Quem? Quem? Quem?

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Marcelo Castro:

CÃO É COISA QUE NÃO SE REPRESENTA.

Aprendi com Por Elise que o Teatro não precisava descrever o mundo ou imitá-lo. Estava declarada uma guerra no campo da Linguagem, uma guerra contra o que está posto à nossa volta. O que é realmente um cão?

Um dia caminhando pela Avenida do Contorno Grace me incitou a pensar em um “organismo vivo”; e esta palavra, “organismo”, me guiou durante um bom tempo. Mais tarde me dei conta que às vezes, era necessário desapresentar o personagem, escondê-lo do público, para mostrá-lo na hora precisa. E é bonito quando já no meio do espetáculo escuto alguém na platéia cochichando: “olha! olha! ele é o cachorro!”

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Paulo Azevedo:

COMO CABER EM UMA ROUPA

Agora vamos conversar. Daquelas conversas atrasadas que podem durar pouco mais que minutos. Já começou.

A família vai bem. Os cachorros continuam latindo palavras bonitas vizinhança afora. A passagem pro Japão continua cara: um sonho de consumo. As ruas continuam limpas. Moças bonitas passam correndo na traseira de ônibus, estampando prédios, caindo em queda livre. Os abacates estão em falta. A vitamina virou um sucesso no meio cult. É servida com gelo seco e Dry Martini nos principais cafés da cidade. Eu? Não tomei ainda não. Pra não engordar.

Imagine que comecei poucos anos atrás a usar um uniforme meio estranho. Os estilistas diziam ser uma mistura de frentista de posto BR (bem verde bandeira, com boné e tudo!) com colete no tronco e um protetor no braço direito feitos de espuma crua. Foi o primeiro passo. Caí no mar e quando se está lá no meio, bem no meio mesmo, a gente não consegue parar para pensar e dizer: “Olha, isso seria melhor se fosse feito assim, se eu andasse assim, se falasse assim…”. Não teve jeito. Fui no impulso ingênuo, despretensioso, de algo urgente, pra ser feito naquela hora. Foi um susto, um momento de suspensão, de sentimentos sem nome, o nascimento. Com essa roupa, segui grandes marcas no chão, duro, pouco à vontade ainda. Precisa experimentar outro corpo, com outra roupa.

Na ressaca do parto, um pouco de racionalidade é sempre bem vinda: com esta roupa não dá. Aumenta aqui, troca ali, costura aqui. E eu lá dentro na busca de um espelho que me desse a possibilidade de ver de fora, entender de fora, sentir de fora. Bora outra vez. Agora como diriam novamente os profissionais da área fashion: “Tá claro que a calça e a camisa são bem melhores que o macacão, mas este colete… este colete pode até proteger, mas ainda não é”. Não precisa ser especialista pra perceber isso. E eu lá dentro. Os pés firmes, desde o início. O chão era fértil, um bom lugar para plantar, criar, colher. Um chão que aos poucos virou território e hoje tem nome: Grupo Espanca!. Interessante este nome. Sabe, me disseram pra não sentir, não me abrir, ser indiferente. Mas será que tem gente que é assim? Isso é gente? Por isso, segurei tudo e veio uma batida forte do coração literalmente na cadência do samba. O coração é uma escola! Vi o sol. Cai. Levantei. Cai de novo e esbravejei em japonês. Outro dia revi esta imagem e confesso que fiquei até um pouco comovido. Forte.

Novos passos. “Vamos embalar tudo, não pra ele não correr o risco de se machucar, de sentir nada!”. Terceira tentativa. Tira o boné e muda o abacate (afinal, pra quê abacate tem caroço?). Soa bem definitiva, soa como a última vez. Coube! E eu pensando: Mas como é que entra nisso? Como é que anda nisso? Como é que cai? Dá pra ir ao banheiro rapidinho antes de entrar? Não. De cara nota-se. Até aí foram meses. Cresci. Engordei. Emagreci. Experimentei o drink de abacate (uma vezinha só). Veio a crise: ainda não é isso. Tentei ser alemão, ser durão, ser outra coisa que não me fez dançar com esta roupa. Sentir a pele solta lá no oco, mesmo protegida.

Pele. A pele solta água, né? Interessante isso. Porque a roupa foi aos poucos sendo absorvida de mim. A espuma encharcou até que ela e eu achamos um lugar comum: o corpo. Com ele veio a intenção mais clara, a fala mais humana, a compreensão do caminho. Gente é uma represa d’água, grande, segura, estável, até que um vazamento aqui, um poro aberto ali, uma fissurinha, um rasgo e… Rompe-se uma torrente de sentimentos estancados, fazendo o coração sair correndo em direção ao mar! Ai, ai… A roupa está do meu tamanho, e eu do dela. Estamos juntos. À base de muito estica e puxa, de apertos, cortes, de caminhadas, corridas, vôos, e muitas, muitas palmas. Cerimônia que ela, a “roupa protetora” (deixa “ela” continuar acreditando que me protege, deixa…) e eu, vimos muitas noites e celebramos este encontro que me faz acreditar ser o primeiro de muitos. Isso, a Senhora certamente não imaginava. A vida é assim, imprevisível.

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Funcionário.
BH, verão de 2007.

P.S: Dona Elise, quando passar pelo seu quintal antes de dormir, lembra de dar “Boa Noite” com carinho a cada galinha e apague as luzes para que elas tenham um sono feliz.

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Renata Cabral:

AOS SENHORES E SENHORA ESPANCA!

“Que gentileza bruta!” E foi com a sutileza dessas palavras doces e fortes que me encontraram nessa história. Foi com o tempo correndo, correndo, correndo… A “bruteza” foi o susto e a gentileza foi de não me negarem o profundo nessa velocidade. Essa era mais de todo mundo do que minha.

Me lembro dos primeiros ensaios, das caras, dos corpos, do tempo de cada um que não me pertencia, ou não me conhecia… É diferente o contato da cerveja e o contato do olho e do corpo, né? O corpo procurava encaixe naquelas palavras, nos outros corpos, nos acertos do tempo, na corrida, mais do que no espaço, por um espaço. O espaço foi construído devagar, com a paciência daquele que me pedia para ficar um pouco mais. E a gente corria, corria, corria. Em direção a nós mesmos. Falamos de respiração, de emoção, de languidez, daquilo que vamos entender só lá na frente, do que se toca… Mas até onde podíamos nos tocar? Ninguém sabe, acho que até hoje não sabemos. O ser humano é uma coisa delicada, né?

A gente se procurava. Que coisa importante! Não sei. Sinto que nos procuramos até hoje… Um dia tivemos que latir. E como é difícil a bruteza exposta, a bruteza de mim, sabe? Latir naquele lugar foi isso, ter que sentir raiva para não esconder. Eu não podia esconder. Com tempo fui entendendo que latir é mais. É o essencial da vida. O primeiro sopro ou a primeira explosão. É aquilo que precisa ser colocado pra fora pra que as coisas mudem, pra que a vida mude, pra que se caia, mas levante ali na frente.

E pode ser no mar…

Acredito que eu tenha sido um latido em vocês, mesmo rouco. Vocês foram um latido em mim e que veio de mim. Como deve ter sido difícil essa pessoa estranha, espanca! E como eu não senti isso.

Ai, agora eu já não sei de mais nada!

Obrigada!

Mulher.

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Samira Ávila:

DO DIA EM QUE VIREI UM BICHO

Lembro do ensaio em que a Grace me deu quatro páginas de xerox do capítulo “A viagem” do livro “Perto de um coração selvagem”, da Clarice. Minha Mulher já sabia cair, mas tinha que aprender a se levantar. Eu tinha dificuldades de encontrar forças pra ela. Achava que ela não tinha mais motivos para seguir em frente, para repetir tudo. Aí eu li o texto da Clarice. Fiquei perturbada com a mulher do coração selvagem. Sempre gostei de cavalos. Queria que o grupo se chamasse “Grupo de Cavalos” e já havia decidido há muito tempo que quando eu tiver um cachorro ele vai se chamar “cavalo”. Já tive um cavalo também quando era pequena, mas acho que era mentira do meu pai. E, sim, Clarice: eu iria me arranjar sendo um bicho. Reli o texto.

“(…)eu serei forte como a alma de um animal e quando eu falar serão palavras não pensadas e lentas, não levemente sentidas, não cheia de vontades de humanidade, não o passado correndo o futuro! O que eu disser soará fatal e inteiro! Não haverá nenhum espaço dentro de mim para eu saber que existe o tempo, os homens, as dimensões, não haverá nenhum espaço dentro de mim para notar sequer que estarei criando instante por instante, não instante por instante: sempre fundido, porque então viverei, só então viverei, só então viverei maior que na infância, serei brutal e mal feita como uma pedra, serei leve e vaga como o que se sente e não se entende, me ultrapassarei em ondas, ah, Deus, e que tudo venha e caia sobre mim, até a incompreensão de mim mesma em certos momentos brancos porque basta me cumprir e então nada impedirá meu caminho até a morte-sem-medo, de qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo”.

Escrevi muito urgentemente alguma coisa atrás de uma das folhas do xerox e fizemos uma improvisação da Cerimônia das Palmas. Era aquilo. A Mulher nunca ficou tão fraca, era extremamente cansativo tentar se salvar. E se levantar não significava ser forte.

“O que nela se elevava não era a coragem, ela era substância apenas, menos do que humana, como poderia ser herói e desejar vencer as coisas? Não era mulher, ela existia e o que havia dentro dela eram movimentos erguendo-a sempre em transição”.

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