críticas

14 ago 2017

PassAarão: uma experiência tateante pela cidade, por Clóvis Domingos e Luciana Romagnolli
Teatro e convívio com a rua, por Joyce Athiê

PassAarão: uma experiência tateante pela cidade
— por Clóvis Domingos e Luciana Romagnolli, no site Horizonte da Cena

A saída da sala de teatro, em si, já representa um passo significativo na trajetória do grupo, por sua singularidade. Rompe com a estabilidade da configuração frontal palco-plateia que sempre delineou as apresentações do Espanca, e dentro da qual a situação do encontro teatral frequentemente era problematizada por artifícios da atuação e da dramaturgia. Não bastasse o risco de se lançar ao ambiente desprotegido da rua, “PassAarão” tornou-se, ao longo do processo criativo, também uma espécie de incubadora de uma nova geração do grupo, após a saída de Marcelo Castro e o afastamento de Gustavo Bones, os dois remanescentes da primeira formação.

Sob a direção de Aline Vila Real, que antes atuava como produtora e interlocutora dentro do grupo, e com atores de uma geração mais jovem [1], “PassAarão” chega a público como mais um trabalho de reestruturação do Espanca – uma espécie de reinício. O prefixo “re”, aqui, é fundamental, porque ao mesmo tempo em que há todo um elenco renovado (Michelle Sá é a única exceção, atuou em “Real – Teatro de Revista Política”) e Aline estreia como diretora, há também muita continuidade de propósitos e respeito pela história do grupo (como expõe o figurino de Pedro Henrique Pedrosa, do qual pendem panfletos das peças do repertório).

Esta é uma guinada talvez até mais radical (o futuro dirá) do que a conduzida após a saída de Grace Passô, quatro anos atrás, quando tivemos “Dente de Leão” (que pode ser vista como uma peça de transição entre duas fases poéticas) e “Real”, que estabeleceu a aproximação direta com a realidade social inaugurada anteriormente na cena curta “Onde Está o Amarildo?”. O novo espetáculo avança nessa trilha ao se infiltrar na rua e se relacionar corpo a corpo com estruturas concretas e simbólicas da história e do presente de Belo Horizonte.

Falar da história da capital mineira é um ponto de partida importante para uma dramaturgia (assinada por Allan da Rosa) que se constrói pelas relações entre a cidade e seus habitantes, o que também pode ser dito de outra forma: como as relações entre os habitantes e os espaços constroem a cidade. E põe em evidência como as estruturas concretas, a exemplo do metrô, se sustentam em estruturas simbólicas e relacionais, dentre as quais, as relações de classe e raça na exploração da mão-de-obra durante a construção da cidade – e na atualidade.

Há nisso o investimento em redespertar um sentido de pertencimento, que se traduza em responsabilidade pelo espaço público e pelo comum, onde as singularidades possam coexistir fora da lógica do senhor e do escravo ou da exclusão da diferença. E há uma longa distância (histórica, econômica e social) que separa a cidade projetada da cidade de fato praticada e vivenciada. Quando os versos de “Cajuína” (Caetano Veloso) entoados a certa altura pelo elenco nos indagam “Existirmos: a que será que se destina?”, a cidade também se faz sujeito dessa pergunta, a ser respondida a cada dia por gestores e cidadãos diversos.

Nas ranhuras e contrastes de uma cidade feita de “carne e pedra”, como afirma Richard Sennet [2], no trabalho do Espanca, vemos uma cidade polifônica que emerge,seja através das vozes discursivas dos atores-atuantes,seja na própria voz das ruas com seus passantes. E mais: dá-se um embate entre a história considerada oficial e as histórias da vida cotidiana na cidade.  A mesma cidade que encanta e abriga, é também uma cidade que “espanca”.

O espetáculo começa num tom de informalidade e certa dispersão. Somos convidados a seguir os atuantes que, como “guias turísticos” de outra cidade a ser descoberta, nos convidam a realizar uma experiência caminhante. O tom das atuações busca certa espontaneidade dos atores, misturados ao público, como se suas vozes se erguessem dessa coletividade que compartilha uma vivência comum de cidade para convocar a atenção a sair da rotina. Nesse entrecruzamento discursivo, parece haver o desejo, por parte da encenação, de se misturar diferentes leituras e apropriações subjetivas dessa história, que não cessa de se escrever por cada cidadão.

Algumas vezes, diante de tantas brincadeiras sobrepostas e cortes recorrentes, torna-se difícil manter a escuta. No processo de maturação do espetáculo, caberia ainda trabalhar a forma de enunciação na alternância entre os textos históricos e subjetivos para que o didatismo não prepondere. Nesse mesmo sentido, a marcação das ordens das falas pode ser suavizada para melhor fluir e conduzir o público em meio à vida pulsante da rua. Especialmente considerando que se busca uma apropriação desse espaço por parte dos atores que contamine os espectadores a se mobilizarem juntos.

Ao se apropriar da singularidade dos locais pelos quais passa, a encenação instala poéticas “site-specific”, nas quais esses espaços se tornam lugares pela força do encontro entre subjetividade, corpo e arquitetura.É o que se dá, por exemplo, quando Igor Leal chega correndo de outro extremo (como uma fuga) para denunciar a violência da homofobia na cidade. Sobre um tabuleiro concreto, a discussão acerca de temática tão fundamental simboliza o destino daqueles que divergem dos padrões estabelecidos e são literalmente destruídos ou colocados “fora do jogo”e do campo social.

Igor dirige seus questionamentos ao público e às pessoas dentro da estação de metrô, criando um momento de suspensão que destitui os passantes de seu anonimato momentâneo, e tenta fazê-los também escutar e se mobilizar, até que descobrimos a presença de outro atuante misturado aos anônimos a aplaudir, solitariamente. Quanto mais sua fala poética, cuja contundência corta na carne, atravessa o espaço de espera do transporte público e se interpõe no caminho daqueles que sobem e descem as escadas na lateral do metrô, mais seus sentidos se propagam para além de nós (espectadores que se deslocaram propositadamente para ver o espetáculo e, consequentemente, estão um pouco mais predispostos a ouvi-lo) até os ouvidos de transeuntes espontâneos e ocasionais, provocando fricções inesperadas com o cotidiano da cidade. Essa é também uma potência contida na presença de Brunno Oliveira na entrada principal da estação do metrô, onde sua fala-depoimento sobre agressões homofóbicas e transfóbicas sofridas se confronta com os trânsitos de uma população que pouco ou nada frequenta os teatros belo-horizontinos – e assim encontra outros públicos.

Carregam também essa força poética e política as palavras proferidas pela atriz Soraya Martins quando preenche de afeto o dado histórico sobre as mortes de trabalhadores negros na construção de Belo Horizonte, ao comparar a dor daquelas perdas não à de alguém que vela antepassados, mas de quem sente a ameaça sobre seus próprios “meninos”. Esse entrelaçamento entre uma história pública e a subjetividade que particulariza as experiências coletivas torna mais sensível a dramaturgia também quando, mais tarde, outra vez na pele de uma mãe negra, descreve como usa o próprio sangue para proteger o filho da polícia. As discussões sobre o sagrado feminino, o racismo e a violência policial, aqui, condensam riqueza metafórica à concretude da vida na periferia.

No percurso da encenação, a visita a uma galeria urbana é ponto forte no jogo proposto entre corpos e edificações para a renovação do olhar sobre o espaço público, pois revela as tatuagens e textos urbanos com os quais os sujeitos se apropriam da epiderme da cidade – e critica a institucionalização da arte atual, vista, por exemplo, no Museu situado na Praça da Estação. Condutora desse trajeto, Denise Lopes Leal encontra o equilíbrio entre as intenções da encenação e a relação com os passantes, com os quais vai estabelecendo conexões provisórias, sempre improvisadas e arriscadas.  Pois é isso: eles “passarão” e atravessarão toda a proposta, a cidade não para em função do acontecimento cênico, ela compõe, integra, faz parte. Está viva e em ação.

Os figurinos parecem sugerir a presença de trabalhadores anônimos que constroem diariamente o espaço urbano. Mais do que personagens delineados, os atuantes evocam e encarnam sujeitos cotidianos, com suas “vidas menores” e suas vivências específicas. Esses uniformes destacam os atuantes-condutores de modo a não permitir um embaralhamento entre essas figuras e as pessoas “reais” da cidade, o que poderia ser muito potente para a proposta da encenação. Da maneira como estão caracterizados, parecem buscar menos essa diluição no comum da vida pública compartilhada do que a evidenciação do pertencimento a uma classe social delimitada: o operariado. Assim, o espetáculo assume suas posições de classe, raça e gênero ao lado dos desfavorecidos ou excluídos do corpo social. São estes os que terão voz e visibilidade no traçado pela cidade.

Na saída da Estação Central, os discursos se interrompem para uma subida de costas, criando uma imagem em contra-fluxo e contrastante ao tempo dos passantes. A partir deste ponto, as diferentes apresentações vistas pelos críticos que aqui escrevem proporcionaram experiências distintas. Numa delas, os corpos coreografados deram tônus à encenação ao revelar a pressa cotidiana e o comportamento automatizado nos quais estamos todos comprometidos, além de instaurar uma cena composta por diferentes velocidades e lentidões, num encontro de presenças (dos atuantes e dos usuários do metrô). Na outra, essa qualidade de presença corpórea se dilui, antecipando certa descontinuidade do percurso gerada pela sequência da entrada num bar, onde o fio ficcional cede a um momento de convívio em primeiro plano.

Dentro do bar, a construção dramatúrgica não estrutura o acontecimento, ou seja, não propõe relações entre os sujeitos e o lugar para além do uso habitual, deixa-as soltas, a depender das interações espontâneas, do desejo de tomar uma cerveja ou papear. À sua maneira, esta parada espelha ao fim do trajeto de “Nossa Senhora do Horto” (da Toda Deseo), sem o sentido de finalidade que naquele espetáculo situa a celebração popular como resposta ao moralismo do interior da casa de família (leia crítica aqui). Em “PassAarão”, a ida ao bar não exerce função catártica. Surge no meio do percurso, como mais um ponto de parada da visita guiada (significativo numa cidade em que parte do turismo se organiza em torno da boêmia). Um anticlímax que pode ser considerado como gesto antiespetacular, durante o qual Denise Lopes Leal discretamente planta a busca por um amigo perdido.

Numa das apresentações da temporada de estreia, a violência urbana furou a ficção quando Denise foi parada e revistada por policiais. A segurança aparente do teatro como construção ficcional, mesmo na rua, se desfez: enquanto os policiais a mantinham sob suspeita (a partir de quais indícios ou pressupostos? – nos perguntávamos), algo terrível ameaçava o corpo e a liberdade dela, já não mais garantidas. Uma irrupção do real que seria ecoada, pouco depois, no discurso ficcional de Soraya Martins, mostrando as relações íntimas entre a fabulação da peça e a vida cotidiana naquele espaço público. Quando enfim a atriz foi liberada, a figura diabólica (Bremmer Guimarães) já não tinha como equiparar-se à intimidação recém-testemunhada.

Nessas tantas fricções entre realidade e ficção que permeiam a caminhada da rua Sapucaí à Aarão Reis, a ação política se impõe em forma de manifesto debaixo do viaduto Santa Tereza. O discurso feminista é proferido diretamente para o cenário teatral belo-horizontino, onde mulheres não se sentem seguras nem entre colegas. A gravidade dos fatos, aqui, não abre brecha para a poesia. Em vez disso, incorpora um dos palcos mais importantes das manifestações de resistência na cidade em sua função própria de “megafone” das reivindicações dos oprimidos. Como manifesto, o discurso proferido é da ordem da afirmação, da convocação, da definição. A arte já não se faz campo de abertura de sentidos, mas de tomada de posição.

Poucos passos adiante, encontramos um objeto que se apresenta como síntese das contradições e paixões movidas por “PassAarão”. Imagem única e impactante, de uma beleza inesperada, que representa em imensidão o que nos habituamos a ver feio ou invisível. Num espetáculo-deriva forjado na estética da precariedade, do baixo-orçamento, da composição crua da rua, o que a imaginação artística escolhe reconstruir é o excluído da percepção. Por fim, abre-se o tempo da inversão do olhar para assistirmos ao teatro das ruas, recriando a ação “Ruído” (já realizada por Marcelo Castro).

Ao abandonar o teatro como edifício, como convenção, como lugar seguro, o Espanca! mostra-se interessado em fazer teatro com outras subjetividades, outras concepções de cidade, outros modos de estar junto e de estruturar as relações sociais. Para isso, investiga a rua, sua arquitetura, seus caminhos e sua linguagem, propagando imagens e discursos vistos pelas perspectivas desses outros excluídos das normas sociais.

Tal percurso é movido pela radicalidade dos posicionamentos dos artistas envolvidos, em resposta a um contexto de renovação do fascismo na política partidária e subjetiva. O grupo procura, então, modos de equacionar a ação direta sobre a realidade, de um lado, e, do outro, a poesia que age sobre as sensibilidades para transformar simbolicamente nossas relações. Nos encontros entre esses dois registros, por vezes consegue sobrepor a disputa discursiva em curso em diversas instâncias sociais e instaurar momentos de experiência estética transformadora.

“PassAarão” é ainda um espetáculo tateante, feito de experiências e inexperiências, espantos e diluições. Em sua materialização cênico-urbana, consegue conciliar, na relação dos espectadores com a cidade, uma vivência sensorial e ao mesmo tempo crítica, ainda que suas escolhas espetaculares apresentem ações nas quais predominem a condução do percurso e a discursividade, sem permitir que se criem momentos em que certa vacuidade e uma contemplação mais demorada das paisagens pudessem possibilitar a latência da recepção e uma apreensão até mais minuciosas dos espaços, tanto do ponto de vista geográfico como social, ou a emergência de questões outras e diversas de acordo com o público participante a cada encontro, o que ampliaria ainda mais a condição coletiva do trabalho.

Essa deriva algo estranha ao que se compreendia até então pelo teatro do Espanca! mostra-se como sinal dos tempos e seu imperativo de renovação, de encontrar novos caminhos e novos sentidos. De desaprendizagem do que foi naturalizado para melhor agirmos. De rompermos as identificações a velhos padrões excludentes para libertar novos sujeitos sociais e convocar suas ações a transformar o espaço comum da cidade.

*Apresentações vistas na temporada de estreia, em junho de 2017, em Belo Horizonte.

[1] Três dos atores escrevem para o Horizonte da Cena: a crítica Soraya Martins e os críticos-colaboradores Bremmer Guimarães e Igor Leal.

[2] SENNET, Richard. “Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental”. Editora Record, 2003.

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Teatro e convívio com a rua
Experiências de grupos teatrais de Belo Horizonte despertam interesse pela relação com a vida no espaço público

— por Joyce Athiê, no Jornal O Tempo —

“A rua é, por excelência, o espaço do trânsito, do deslocamento, do devir. De uma esquina a outra, não se sabe o que está por vir, o que pode nos acontecer, quem vai passar. O movimento é constante e difícil de acompanhar. De firme mesmo, só o ‘teto-céu’ sobre nossas cabeças”.

A sinopse de “Nossa Senhora (do Horto)”, espetáculo do coletivo Toda Deseo, de 2016, abre caminhos para a observação, além do próprio trabalho, de recentes experiências teatrais de ocupação do espaço público, especialmente de grupos que não têm em sua vocação inicial o estar na rua.

É o caso do próprio Toda Deseo, que, depois de vivenciar a rua pela primeira vez, com a intervenção Campeonato Interdrag de Gaymada, intensificou a experiência em um cortejo pelas ruas do bairro Horto, problematizando, ao longo do trajeto, questões que tangem as relações de gênero.

Aproximadamente um ano depois, foi a vez de o Grupo Espanca! deixar por um instante as salas de teatro e estrear seu primeiro espetáculo de rua, “PassAarão”, um convite ao público para vivenciar algumas possibilidades da rua Aarão Reis, no hipercentro de Belo Horizonte. E, ainda mais recente, “Escombros da Babilônia”, do núcleo de teatro do Espaço Comum Luiz Estrela, terminou sua temporada de estreia no último domingo, movimentando, pela rua Manaus, um público diverso, curioso pelo manifesto explosivo, com feições de Teatro Oficina, que tanto desperta interesse quanto assusta alguns moradores do bairro Santa Efigênia. “Sabemos que o Estrela dá espaço ao marginal, mas está no coração da cidade, e friccionamos também isso”, aponta Rafael Bottaro, que assina a direção ao lado de Manu Pessoa.

Respeitando as peculiaridades de cada um dos trabalhos citados, vistos em conjunto eles despertam a atenção para experiências de ocupação da rua, provocando outros olhares e vivências para o estar no espaço público, estimulados pela manifestação artística. Não se trata de dar a essas experiências o título de inaugurais ou inéditas. Tampouco de desconsiderar o que vêm fazendo, há anos, grupos dedicados à experiência da rua, como o Galpão, o Maria Cutia e uma lista de tantos outros nomes que poderiam ser citados. Trata-se apenas de desdobrar os, no mínimo, curiosos e recentes experimentos de outras formas de ocupar e de se relacionar com os espaços públicos por meio do teatro.

“Se pensarmos hoje o que tem acontecido politicamente no país, a ideia da ocupação tem sido mais intensa, nas greves e nas manifestações artísticas. Quando decidimos ir para a rua, queremos restaurar determinadas relações que a arte e esse espaço público podem ter”, comenta o ator Rafael Bacelar, integrante do Toda Deseo e também do elenco de “Escombros da Babilônia”.

Diferentemente de “Nossa Senhora (do Horto)” – que realiza uma dramaturgia um pouco mais linear, percorrendo um cortejo que expõe o moralismo e a tradição mineira, em especial no que toca a identidades sexuais e de gênero, a partir de críticas às instituições da família, da Igreja e até da escola –, “Escombros da Babilônia” e “PassAarão” se constroem fundadas em uma profusão de assuntos, numa opção por dar a ver questões sem necessariamente aprofundar-se em determinado tema.

“Nós entendemos que a rua, em especial no hipercentro, é um fragmento capaz de mostrar o que uma cidade vive em relação às suas contradições, lutas e diversidades. E, dentro do coletivo, isso também era muito presente. Estamos discutindo diversas questões identitárias que falam de cidadania e do direito de viver nela, com suas lógicas de poder. A peça fala dessa cidade que a gente acredita que é diversa e em que nada deve ser silenciado, escondido ou marginalizado. Tem a mulher, a mulher negra, as pessoas em situação de rua, a comunidade LGBTQ, a juventude, as pessoas que acreditam na arte como transformação. Tudo isso está ali porque nos interessa”, afirma Aline Vila Real, diretora de “PassAarão”.

A mesma fragmentação de temas urgentes da atualidade se realiza com o núcleo de teatro do Luiz Estrela, que, desde o primeiro trabalho, buscou dar visibilidade ao Espaço Comum e aos temas que envolveram a vida de Luiz Otávio da Silva, a Estrela. “A situação de morador de rua, a homossexualidade, questões de saúde mental, o artista. Essas bandeiras vêm também para o Espaço. E, além disso, queríamos dar voz ao lugar de enunciação de cada um que estava ali no grupo. São cerca de 66 pessoas no elenco, entre atores e não atores, e eles puderam escolher seus textos, falar do que acham importante para a sociedade”, comenta Bacelar.

Em todos os trabalhos, as relações exploradas entre artistas, público e a rua são o que mais desperta a atenção. Em “Nossa Senhora (do Horto)”, a praça, os muros e suas pichações e a boêmia de um quarteirão do bairro Horto são vividos em cena. O trabalho finaliza-se no convívio entre artistas e público com um pagodão no chamado Bar da Rita. Em “Escombros da Babilônia”, em certos momentos o público é convocado a entrar em cena, podendo circular por entre os atores e interagir com uma diversidade de discursos, além de ser introduzido em um casarão do Luiz Estrela, numa segunda parte do espetáculo.

Cidade
Dramaturgias porosas em espaços públicos

Entendendo as peculiaridades de cada espaço ocupado, é em “PassAarão” que a radicalidade do convívio com a rua se estabelece enquanto princípio do trabalho. Ao longo do cortejo que se inicia na rua Sapucaí, passa pelo metrô e percorre a Aarão Reis até o viaduto Santa Tereza, a rua adentra o espetáculo, com o convite ou não dos artistas. Os moradores do espaço interagem e cortam a apresentação, o ônibus passa e até a intervenção da Polícia Militar entra em jogo.

“Essa foi uma primeira decisão da direção, trabalhar uma abertura para a rua e entender que os acontecimentos que não dominávamos e não temos como prever fazem parte do trabalho. Tínhamos que nos preparar para poder estar e conviver com tudo isso que pudesse surgir. Isso faz parte do trabalho, muito específico a cada dia”, comenta Aline.

Ela conta, como exemplo, o caso de Úrsula, artista, mulher, trans, negra, moradora da região, que conviveu com o grupo durante o processo de criação. “Um dia ela me perguntou se poderia entrar em cena para fazer um contemporâneo. Ela entrou na cena final e dançou lindamente, com noção de tempo, de espaço, de performance. Isso podia acontecer ou não. Tinha dia que ela não aparecia. O espetáculo precisava ter abertura para isso, mas sem depender disso. O que fica é um desafio contínuo de estar aberto para a rua e os espaços, para as reações do público e também para as nossas reações diante o espaço, diante do outro”, conta a diretora.

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