Textos dos criadores

9 jun 2011

espanca!
grupo XIX de teatro

espanca!

QUE DURAÇÃO É ESSA DE “ESTAR”?

Marcha para Zenturo, além de uma peça de teatro, é o resultado de uma vivência e convivência complexas, onde a intimidade, os procedimentos, as visões de duas companhias se escancaram na generosa experiência de encontrar, reconhecer e criar com o “outro”. A sala de ensaio tornou-se nesse trabalho a arena de um encontro estético e político onde o exercício da diferença, o olhar sobre o outro, a atração do desconhecido, se revelam como força não só para a realização de um projeto de arte, mas sobretudo para a possibilidade de pensar o homem e as relações que ele estabelece na diferença e na igualdade. Para sua realização, uma série de ações foram desenvolvidas ao longo de uma extensa trajetória de encontros entre Grupo XIX de Teatro (SP) e Espanca! (MG):

Em 2006: apoiado pela Lei de Fomento ao Teatro para a cidade de São Paulo, o Grupo XIX promove uma série de reuniões-almoços chamadas de “Encontros Antropofágicos” onde grupos de teatro eram convidados a dividirem a mesa tendo como prato principal  a discussão e troca a partir de suas trajetórias, projetos estéticos e modos de produção. Em um desses encontros, o XIX recebe o grupo Espanca!  para um suflé de frango e uma deliciosa sobremesa de abacate.

Em 2007: O Espanca!, apoiado pelas Leis Estadual e Federal de Incentivo a Cultura, convida o Grupo XIX e a Cia Brasileira para o ACTO 1, edição de lançamento do Projeto ACTO.

Em 2008: o Grupo XIX, apoiado pela Lei de Fomento, propõe ao Espanca! a realização de um mini-processo em que o resultado não seria mais fruto do trabalho nem do primeiro nem do segundo, mas um terceiro trabalho, híbrido, com a potência de um contato estabelecido sem hierarquias e feito do desejo de transformar-se a partir do encontro. Em dois meses de trabalho contínuo nasce o embrião “Barco de Gelo”, um working in progress que se mostra ao público com apresentações na Vila Maria Zélia em São Paulo e no Galpão Cine Horto em Belo Horizonte.

Em 2009 e 2010: Os coletivos decidem encostar o barco e marchar em terra firme. Viabilizados pelo Programa Petrobrás Cultural, criam o espetáculo durante o segundo semestre de 2009 e o primeiro de 2010 (quando o espanca! se muda temporariamente para São Paulo).

Marcha para Zenturo é uma busca pelo sentido do tempo, através de metáforas que o representam: um encontro entre amigos é o que metaforiza o “passado”, já que é tão emocionante, estranho e constrangedor encontrar-se com pessoas íntimas de um tempo que já se foi, nossas testemunhas. O tempo “presente” é representado pelo próprio ato teatral, e é bem simples entender o motivo: essa arte se ocupa de potencializar o presente enquanto ato e linguagem, além do fato de que isso de “apresentar, apresentar, apresentar e apresentar uma peça” é indubitavelmente uma metáfora precisa do “viver, viver, viver e viver todos os dias”. E diríamos que com certeza algum poeta já disse, diz e dirá que fazemos coisas muito parecidas todos os dias, e todos os dias essas coisas serão muito diferentes. O presente, dito “aqui-agora”, é uma sobreposição de passado e futuro, realidade e ficção, memória e projeção, espaço de conversão, transmutação. E, por fim, isso que se diz “futuro”, é aqui representado por um lugar desconhecido pelo qual se luta e se marcha. Este trabalho é também reflexão sobre como o homem se relaciona com o tempo na esfera contemporânea. Essa forma estranha e sensacional de multiplicar espaços, de multiplicar-nos, e vivermos nessa vertigem entre o atraso e o atropelo. Vertigem em que a humanidade avança e também adoece.

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grupo XIX de teatro

Nos encontramos, Espanca e Grupo XIX de Teatro, para a experiência de criar juntos, conviver, partilhar espaços, ideias, utopias, e também compartilhar dúvidas, angústias, crises.

Marcha para Zenturo é a materialização desse encontro, um grupo de São Paulo e um grupo de Belo Horizonte. Nele, os dois grupos se fundem para a criação de um só trabalho. A peça foi sendo construída ao longo de atividades de intercâmbio em Belo Horizonte e São Paulo. Todo o esforço caminhou no sentido de tornar real a possibilidade quase remota de dois grupos, com trajetórias e trabalhos distintos, de cidades diferentes, se juntarem num mesmo projeto e criarem as condições para um processo longo – 8 meses em sala de ensaio e mais de dois anos de trabalho para que este projeto não se perdesse. Para além de seus temas e discussões, pensamos hoje que o desafio de criar juntos talvez tenha sido a maior contribuição política deste trabalho. Formulamos um projeto que era ao mesmo tempo espaço do risco, abertura para o “outro”, o diferente, era também arejamento para nossos próprios procedimentos.

Tudo começou quando no ano de 2006, apoiados pela Lei de Fomento ao Teatro para a cidade de São Paulo, o grupo XIX de teatro pode promover uma série de reuniões-almoços chamadas de “Encontros Antropofágicos” onde grupos de teatro eram convidados a dividirem a mesa, tendo como prato principal  a discussão e troca a partir de suas trajetórias, projetos estéticos e modos de produção.  Foram quase 16 grupos de todo o país que abriram suas “cozinhas”, suas salas de ensaio, seus escritórios, para falarmos francamente sobre nossos prazeres e dificuldades em se fazer teatro. Era o ano de 2006 e vivíamos talvez um certo auge da ideia de teatro de grupo, tanto como única forma de sobrevivência quanto como crença nesse projeto de coletividade. O grupo Espanca, considerado um grupo “primo” por ter uma trajetória muito parecida com a do XIX, foi então recebido para uma dessas conversas e começamos o namoro, ainda nem imaginando o quão “sério” ele iria se tornar! Em 2007, foi a vez do Espanca! nos receber dentro do Acto I, numa imersão de sete dias na cidade de BH onde os grupos puderam mostrar seus trabalhos, materiais em processo e, sobretudo, refletir e trocar a partir das razões artísticas que movem esses coletivos. Percebemos o quanto a prática é reveladora de um modo de pensar o mundo e o teatro e, nos aproximando do ambiente da sala de ensaio a partir da mostra de processos de cada grupo, intuímos que apenas numa troca criativa teríamos uma real experiência de encontro. Em 2008, o XIX propõe ao Espanca a realização de um mini-processo em que o resultado não seria mais fruto do trabalho nem do primeiro nem do segundo, mas seria uma terceira coisa, nascida do encontro, híbrida, com a potência de um contato estabelecido sem hierarquias e feito do desejo de transformar-se a partir do outro. Neste momento, o XIX já ansiava por explorar outros modos de criação e já sentia um certo esgotamento na sua forma colaborativa de construção da dramaturgia que gerou seus três primeiros trabalhos. Nos pareceu que a experiência do Espanca em relação a esse terreno, por ser muito diferente da nossa, nos apresentaria um novo horizonte. Ficamos dois meses em trabalho contínuo, discutindo, improvisando, tateando o outro grupo e se esforçando para avançar com delicadeza para que nenhum grupo se impusesse ao outro. Desta escuta e desse prazer de jogar num terreno novo, nasce o embrião “Barco de Gelo”, um work in progress que se mostra ao público em apenas 8 apresentações na Vila Maria Zélia em São Paulo e duas no Galpão Cine Horto em Belo Horizonte. A história terminaria aqui já que nenhuma determinação prévia exigia que esse experimento se tornasse um espetáculo. Mas, este momento, o ano de 2009 mais precisamente, marca um período importante para o XIX onde um estado de crise faz o grupo questionar seu modo de produção, seu rumo estético, as relações que tinha conseguido criar até ali. É um ano também onde pululam em vários lugares o desejo dos grupos trocarem uns com os outros, sentindo talvez a mesma necessidade de arejamento. Muitos coletivos que eram “jovens” no momento do movimento Arte contra a Barbárie (movimento que mudou o panorâma do teatro de grupo na cidade de São Paulo), agora já estão completando 10, 15 anos de trabalho e sentem a necessidade de rever muitos de seus conceitos para abandoná-los ou para reafirmá-los a partir de uma convicção renovada. E é este quadro que nos faz acreditar que criar um espetáculo junto com o Espanca seria o melhor caminho. Confirmado o desejo recíproco, tivemos, desta vez, mais 6 meses em sala de ensaio. Os mineiros se mudaram para São Paulo e por este período vivenciaram e ocuparam conosco a Vila Maria Zélia. Agora já não era um processo “descompromissado”. Tínhamos a tarefa de criar a quarta peça de cada um dos grupos e as decisões agora seriam mais definitivas: os temas, o discurso, a forma.  Tudo se torna um território de embate político, de aprendizado com o outro, do exercício de construir algo juntos.

Marcha para Zenturo é fruto dessa trajetória, desse encontro e, contraditoriamente ou não, fala justamente de desencontro, da dificuldade em se compartilhar o tempo presente. Parece difícil estar, realmente, no presente. As vezes, as percepções se dão mesmo com certo “delay”. Ainda buscamos entender o que é o nosso “Zenturo”, o que conseguimos dizer sobre o nosso tempo ao falar de um futuro distante em 2441. Em cena, amigos que não conseguem partilhar o instante, um grupo de teatro que cumpre um ciclo, uma janela para a esfera pública onde uma multidão marcha para (ou por?) Zenturo. Quem marcha? Pelo o quê marcha? O que ainda pode reunir pessoas? Porque estamos nós, olhando por essa janela, sem nos juntar a massa? Sem nem, ao certo, saber dizer o que ela busca? Hoje, para o XIX, no nosso “delay”, vamos amadurecendo nosso sentimento em relação ao espetáculo. E, como nunca, percebemos que não são as personagens, mas nós mesmos, artistas, grupo de teatro, que olhamos por essa janela e encaramos o público com muito mais perguntas do que respostas. Para nós do XIX, Marcha para Zenturo nos coloca diante da importante questão de como ocupar o lugar público, o que dizer do nosso tempo presente. A peça aponta o teatro como esse espaço possível de encontro e fala da arte como esse algo “que talvez possa curar alguma agonia do homem”, mas tudo isto, em nosso “Zenturo” se apresenta como algo ameaçado, em crise. E, certamente, isso não fale só de “Zenturo”, lá em 2441, mas do nosso presente também.

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