Textos dos Criadores
6 jun 2011

Grace Passô
Gustavo Bones
Marcelo Castro
Paulo Azevedo
Rita Clemente
Samira Ávila
Grace Passô:
Quando pensei na possibilidade de uma peça com a história de “Amores Surdos”, pensei “Ui ui! Isso diz algo, essa idéia é uma forma que expressa alguma coisa que sinto”. E então, ui ui, brotou em mim pela primeira vez, o desejo de escrever. Porque não bastaria interpretar um personagem, tratava-se, para além de um desejo de atuação, de um desejo artístico de escrever uma trama, algo para além de meu próprio corpo. Comecei a escrevê-la. Tempos depois, o grupo desejou encenar essa história e eis que ela foi sendo construída e reconstruída no processo de criação da peça. E não foi fácil.
Eu seria irresponsável se não dissesse isso: este texto nasceu como uma ode à minha família. Ao que vivemos e construímos juntos. Data os rascunhos, comecei a escrevê-lo em meus poucos 17 anos, enquanto, imagino hoje, devia estar me indagando como o amor é complexo. No começo, não imaginava que interpretaria a Mãe. E quando tive que improvisar a ordem de não matar o Grande Bicho, minha cabeça estava na minha história, quando meu pai morreu repentinamente e de repente foi preciso um grito maternalmente cru para acordar algumas pessoas de que era preciso continuar a viver.
Gustavo Bones:
OH! DERRADEIRAS DA ALMA. AGORA ENTENDO.
Talvez estivéssemos todos dormindo. Fazendo apenas o que nos desse vontade. Caminhando por aí de olhos abertos, bebendo água, às vezes vendo TV, escovando os dentes, mexendo nas gavetas… fazendo o que a alma pedia. Sem responsabilidade. Dormindo. Todos nós: eu, Pequeno, Marcelo, Graziele, Samuel, Grace, Joaquim, Paulo… esperando, inconscientes, um telefonema daquele que mora longe, avisando que desistiu de viver. E enquanto construíamos nossa família fomos percebendo a natureza desses amores surdos criados por todos. Entre nós. Diariamente. É um amor grande. Mas que às vezes sufoca. E para aqueles que têm os pulmões pequenos, respirar junto é mais difícil. Então algumas pessoas cresceram… (dar o nó no sapato é muito complicado. E exige coragem.) Outras foram embora… (o primeiro dia não é fácil, eu sei.) Mas aqui em casa agora é assim: as portas ficam sempre abertas. E quem já morreu, quem ainda precisa de colo, quem mora aqui por perto, quem está do lado de fora, quem mora longe, quem acabou de partir… todos são celebrados com muito amor. Amor maduro de quem já construiu – e viu ruir – tantos castelos. E no entanto, continuamos: Mamãe reclamando da coluna, a Grazi estudando inglês, o Pequeno entrou na natação, o vô sempre vem nos visitar… Todos com celulares nas mãos. Alguém pode estar querendo falar e isso é muito importante. Não é?
Marcelo Castro:
“Oh, como cantam no andar de cima! Há um andar em cima nesta casa, com outras pessoas. Há um andar em cima onde moram pessoas que não percebem seu andar de baixo, e estamos todos dentro do tijolo de cristal”.
(Júlio Cortázar – Histórias de Cronópios e Famas)
Estou diante do público e existe uma história entre nós. É a história das pessoas que estão diante de mim, que de fato não me escutam, que não me abrem a porta. Eu vejo as lentes dos seus óculos brilhando no escuro, ouço risos abafados pelo acrílico e eles não assistem. Quem ajuda? Pai? Amores Surdos é uma peça dolorida, que toca feridas profundas. Que aperta o nosso calo mais escondido. “Têm coisas que foram feitas pra se viver com elas”.
Paulo Azevedo:
GRANDE FÔLEGO DE UM PEQUENO PULMÃO
Pé ante pé. Descalço.
Nas últimas semanas deparei-me com a enorme dificuldade de colocar, nestas linhas, algo sobre aquele que foi e, tem sido meu filho, nos últimos anos. Filho sim. E caçula. Quem vai negar que um personagem interpretado por alguém, não é uma cria?
Escrevo porque preciso, porque dói, como diria Clarice Lispector. Já começo tendo que lidar com a escolha de palavras para compor a lógica de raciocínio, enquanto um turbilhão de sentimentos, imagens e memórias me toma. Então, por favor, venha comigo independente do tortuoso caminho que vamos percorrer até o final.
Começo pelo papel. Pelo que “Pequeno” era originalmente, antes de mim: papel. Folheei as diversas versões do roteiro e pude relembrar algumas curiosidades que deixaram de ser palavras para ser corpo. Por exemplo: Pequeno sempre foi um garoto preocupado (por isso, os ouvidos sempre atentos à “campaiña”, ao telefone e as conversas da casa, inclusive as do andar de cima); ele adorava o “çíndico” (sim, ele falava muito errado!); e, certa vez, na escola, desenhou dois pulmões minúsculos. A professora não percebeu e achou que ele tinha desenhado um detalhe da camisa. Ah, como se não bastasse todos os acontecimentos trágicos ao longo do espetáculo, ao final de tudo, ele encarava duras revelações: a primeira, que seu bicho de estimação não era macho, mas fêmea – “Imagina o impacto disso na vida de um menino?”; e a segunda, que ele estava todo o tempo, no teatro. Após a tomada de consciência, exclamava num grand finale: “Ó derradeiras da alma. Agora entendendo!”. Haja fôlego! Fôlego foi o que não faltou. Ainda nas primeiras semanas, recordo dos experimentos com objetos e improvisações. Numa delas, cada um criou um clipe para o personagem. Pequeno não pensou duas vezes: uniu o gosto pelos musicais com o sonho de respirar direito e perder o medo da água. Encheu dois balões de água, apertou-os contra o peito. O olhar era de dar dó. Ao estourarem, a poça foi o suficiente para ele se esbaldar ao som de “Cantando Na Chuva”. Não vou esquecer o olhar dos colegas ao final desse momento, no mínimo surreal, que se restringiu à sala de ensaios.
Isso me remete a outra lembrança, essa, vista pela platéia: num determinado momento, Pequeno conversava com Samuel, já do lado de fora da casa. Pela primeira vez, ele percebia a presença dos espectadores e buscava compreender: quem eram? o que faziam ali, na casa dele? E queria saber mais: “Por que não falam?”. No segundo dia de apresentação, no Festival de Curitiba (após uma estréia no mínimo, traumática!), uma das peças do castelinho caiu fora da área de cena. Lembro de olhar para o espectador como se pedisse de volta. Com sorriso, ele me entregou. O pacto estava feito. Aliás, esse pacto resultou em instantes de extrema sutileza e companhia. Mesmo na distância dos espaços maiores, era possível identificar no olhar das pessoas: o teatro feito ali era uma invenção coletiva, fruto da parceria entre quem faz e quem vê e acredita no que é feito. Eu sou uma criança. Não havia dúvidas: o olhar ingênuo, as linhas tortas de um corpo ainda sem o aprendizado dos limites do mundo adulto, a sexualidade ainda sem contornos conscientes, fora de qualquer moral.
Enquanto fuço as gavetas, fico imaginando que Gentil, o pai, talvez tivesse uma relação secreta de muita proximidade com Pequeno e mais: que ele ajudava a cuidar do bicho de estimação! Quem já viu “Amores Surdos” sabe da gravidade disso! Será que foi numas das horas de “dar comidinha” ao filhote, que Gentil, distraidamente foi… Não, não é possível. Não consigo controlar os pensamentos (todos nessa linha, já aviso). Parei.
Cada personagem, um timbre, um registro sonoro. A afinação se deu aos poucos, a longo prazo, até ser possível escutar cada instrumento e melhor: o conjunto. Nesse trabalho é fácil perceber o quanto a ação de um gera conseqüências, reflexos. Como na vida. Talvez seja esse o principal ponto: vivemos cercados pelos outros. Não é possível ignorar a convivência. Dê um passo e haverá mudanças. Não dê, e outra mudança também acontecerá. Não há saída. Nem bela, nem feia. O amor que sufoca; as palavras sinceras e confessionais jogadas ao vento; a estranheza de ver a cor dos olhos do outro, que cresceu ao seu lado, e ver que já não é mais como foi registrado um dia; a vontade de esticar a coluna torta; a dificuldade de calçar os sapatos que delimitam o tamanho dos pés ao mesmo tempo em que o abrigam; a briga entre o que idealizamos e a beleza do realizado. Tudo isso está em nós, criadores. Ao nosso redor e está nessa obra. Obra na qual as pérolas são limpas após cada espetáculo para serem lançadas, novamente, na próxima sessão. Para muitos.
Paulo Azevedo, “Gentil” do Pequeno.
Madrugada do Dia dos Professores /2008.
Rita Clemente:
Esta obra é feita de dissonâncias, está baseada na diferença. As notas são mínimas, frações de tempo. É como ouvir um instrumento antigo, a princípio desconforta aos ouvidos mas aos poucos faz vibrar na memória… O tempo… Sempre. Rara experiência.
Samira Ávila:
Amores Surdos veio para mim aos poucos. Rápido e intenso e aos poucos. Como a construção de uma casa. Preciso habitá-la, mas antes saber que “tipo” de casa eu quero construir. E pensando assim não viso, inicialmente, o resultado estético desta casa, mas sim como eu quero me sentir dentro dela. Assim como é mais fácil sentir nossa família do que enxergá-la, ouvi-la. Pairava no ar as incertezas e as mil possibilidades dos tantos moradores de Amores Surdos. Já não éramos mais vizinhos, mas Família (e sobre este tema anotei num caderno uns tópicos sobre algumas “funções” da Família que achei em algum lugar: “geradora de afeto”, “proporcionadora de segurança e aceitação pessoal”, “proporcionadora de satisfação e sentimento de utilidade”, “asseguradora da continuidade das relações”, “proporcionadora de estabilidade e socialização”, “impositora da autoridade e do sentimento do que é correto”). Obviamente que não tínhamos esta família e para construir a nossa – torta, surda e real que fosse – era preciso perder o chão de transeunte, de passante, de meros conhecidos…O trabalho com a Rita foi fundamental para este processo básico de (des) estruturação. Ela nos fez ver a nossa casa muito engraçada, meio sem teto, com pouco chão. E fomos meio que construindo do zero. Por Elise foi um encontro surpreendente, Amores Surdos era vontade de ficar. E assim segui neste processo, tentando achar um chão mais firme, mudando os móveis mil vezes de lugar, com medo tanto de entrar quanto de sair desta casa, oscilando…Até que percebi que este processo era maior que nosso espetáculo em si, saía inclusive fora dele. Também percebi e principalmente aceitei que, mesmo se meu quarto não estivesse em ordem, a casa já estava de pé. A casa não iria cair, ela sustentava meus passos incertos. Até que eles ficassem mais firmes…E não é assim que a gente aprende a andar?