UM PISCAR DE OLHO SERENO E REVOLTO, de Valmir Santos
publicado no blog Teatro Jornal em 26-8-2014
Quem somos
No dia 17 de setembro de 2004 uma pequena cena pariu o grupo Espanca!. Nos últimos 14 anos, a companhia criou 8 peças de teatro, um conjunto de obras que revela sua pesquisa sobre a encenação de dramaturgias contemporâneas, propondo discussões sobre os códigos do fenômeno teatral e a escrita do que chamamos de “poética da violência”. Há 8 anos, o grupo ainda mantém um espaço cultural no hipercentro de Belo Horizonte, aberto a propostas artísticas de diversas linguagens. Estima-se que os projetos da companhia já alcançaram cerca de 130.000 pessoas.
Com Por Elise (2005), Amores Surdos (2006), Congresso Internacional do Medo (2008) e Marcha Para Zenturo (2010) o Espanca! criou espetáculos inéditos escritos pela dramaturga (e eterna companheira) Grace Passô. Estes textos foram publicados numa coleção de livros que pode ser adquirida em livrarias de todo o país, pela internet ou com o próprio grupo. O Líquido Tátil (2012) foi escrito e dirigido pelo argentino Daniel Veronese, um dos maiores nomes do teatro mundial. Dente de Leão (2014) foi escrito por Assis Benevenuto e dirigido por Marcelo Castro. Real (2015) é um programa de 4 peças curtas criadas a partir de fatos que marcaram a sociedade brasileira. O mais recente espetáculo é PassAarão, dirigido por Aline Vila Real e com texto de Allan da Rosa. Na última década, estes trabalhos fizeram 692 apresentações em 63 cidades de todas as regiões do país, além de Alemanha, Chile, Colômbia e Uruguai.
Nossa casa está localizada embaixo do tradicional Viaduto de Santa Tereza, uma área de extrema relevância cultural, política, social e antropológica para a cidade. Acompanhe a programação do Teatro Espanca!, uma agenda diversa e continuada proposta por grupos, coletivos ou artistas de todo país.
O Espanca! também já realizou 3 edições do ACTO! Encontro de Teatro (2007, 2010 e 2014). Este evento é, ao mesmo tempo, um festival de teatro e um encontro íntimo entre companhias brasileiras. Os Núcleos de Criação (2012, 2015 e 2016) são processos criativos abertos a artistas e estudantes de arte interessados em investigações propostas pelos integrantes do grupo. O Espanca! também já ministrou 19 oficinas formativas em 12 cidades do Brasil; além de dirigir Delírio em Terra Quente (2010), espetáculo de formatura do curso profissionalizante em teatro do Palácio das Artes (MG).
Nossa vida é assim, “violentamente doce”.
Um piscar de olho sereno e revolto, de Valmir Santos
Uma década de reinvenção e relação com a cidade, de Luciana Romagnolli
Alteridade e novos grupos na década de 2.000, de Valmir Santos
O texto e a farpa – Divagações sobre a produção dramatúrgica no Espanca!, de Vinicius Souza
A relação convivial na base da fábula contemporânea, de Luciana Romagnolli
Duas cenas curtas balizam a identidade artística do grupo espanca! construída ao longo de sua primeira década. Em 2004, Por Elise, título homônimo do espetáculo desdobrado no ano seguinte, surpreende e encanta pela exposição de um sistema cênico aparentemente simples ancorado em requintada elaboração das escritas de texto, de cena e de atuação. Essa rara conjunção, almejada por todo criador atilado, finca raízes sob as mãos e pensamentos de moças e rapazes que, intuímos, não pactuam de largada a ambição de revolucionar a morfologia do teatro. Antes, jogam abertamente com os rastros existenciais, as inspirações artísticas embrionárias de suas escolas livres ou formais e a sincronia de época com outros pares inclinados à pesquisa permanente na capital mineira ou alhures. Condensação estilística e moldura poética inatas fixam a inquietação como princípio.
Na outra ponta da linha do tempo, a peça curta Onde está Amarildo?, de 2013, abre flanco para a investigação do real em cena. Vem espargir crueza em termos de conteúdo e de estrutura plasmando o mal estar da sociedade diante da violência urbana e de estado, o limiar das manifestações de massa em junho orientadas pelo sentido de justiça nas diversas variantes da cidadania. O transe capturado não é só o do país, mas também o da própria constituição do espanca!, mobilizado pela saída de uma de suas forças-motriz, a atriz, dramaturga e diretora Grace Passô, enveredada por demandas pessoais e profissionais apesar de ter lugar cativo nos elencos dos quais participou, na medida das possibilidades das agendas.
Prospecções sociais, políticas e biográficas à parte, ou melhor, entranhadas, a linguagem jamais resulta obliterada em Onde está Amarildo?. Tortura e desaparecimento como motes de enredo, personagens de contornos realistas misturados a figuras fantasmais e armários de aço como móbiles cenográficos catalisam as infiltrações ficcionais dessa síntese indignada e alegórica.
A Mostra que neste segundo semestre de 2014 aporta quatro espetáculos do grupo evidencia as bases desse percurso. Por Elise, óbvio, por embrião e assentamento do projeto artístico. Amores surdos, de 2006, montagem assinada por Rita Clemente, pelo tônus que redimensiona a extraordinária fruição da obra seminal. Reflexo de encontro feliz e parturiente, por assim dizer, com uma encenadora ousada e condizente para alicerçar a natureza febril de Gustavo Bones, Marcelo Castro, Paulo Azevedo, Samira Ávila e Passô, a mesma formação original de Por Elise (ambos os espetáculos incorporam atores substitutos nos últimos anos).
O líquido tátil, de 2012, reúne os cofundadores Bones, Castro e Passô em novo mergulho sem rede: intercâmbio com Daniel Veronese, o argentino autor do texto e convidado a dirigir o grupo de Belo Horizonte do qual provavelmente nunca ouvira falar. A reciprocidade de risco faz com que Veronese, ícone do teatro de pesquisa portenho, um dos responsáveis pelo lendário conjunto El Periférico de Objetos, recebesse o trio de atores em seu estúdio, em Buenos Aires, bem como se permitisse conhecer a cidade dos brasileiros que abraçaram sua peça de 1997.
Suspeitamos o quão Veronese teria ficado boquiaberto ao saber do interesse de um grupo do país vizinho em levar à cena uma obra dos anos de 1990 que radica essencialmente as autorreferências da cultura teatral, em especial aquelas de sua Buenos Aires e, em particular, a reverência ao dramaturgo russo Anton Tchekhov (1860-1904) que sorverá como nunca nas criações da década seguinte e soa mais subliminar na metalinguagem do que seu colega italiano Luigi Pirandello (1867-1936) em Seis personagens em busca de um autor, por exemplo.
Quanto a Dente de leão, que debuta na Mostra, ainda sabemos pouco no ato destes apontamentos, a dois meses e meio da estreia. Mantém a inquietude em torno do real e espreita questões relativas à educação, mais um dos paroxismos do Brasil contemporâneo de economia emergente e de misérias latentes. A dramaturgia concebida pelo integrante do grupo Quatroloscinco – Teatro do Comum, o ator e pesquisador Assis Benevenuto (que já atuara em Amores surdos), denota afinidade geracional e obstinação pela teatralidade, premissa histórica no espanca!.
O privilégio de acompanhar a gênese e o desenvolvimento de jovens artistas nos faz pensar nos parâmetros da brevidade. A excitação das primeiras produções e a convicção das últimas compreendem um piscar de olho sereno e revolto nessa travessia. Como se os dez primeiros anos aqui celebrados equivalessem à cena curta das vidas que enredam. Dez anos curtos e curtidos.
Em tempo: 1) curiosamente, a imagem do animal no título da nova obra ecoa as “presenças” dos cães em Por Elise e O líquido tátil, além do hipopótamo em Amores surdos. Donde os instintos falam forte nos fundamentos técnicos e estéticos do grupo. 2) é preciso observar que tanto Congresso internacional do medo (2008) como Marcha para Zenturo (2010), este em inspirada parceria com o Grupo XIX de Teatro, de São Paulo, são trabalhos modelares de como o espanca! consegue medir as temperaturas sociopolíticas e comportamentais do presente sem reduzir-se à mensagem em si, estimulando o espectador à leitura cúmplice; à contrapartida da arte em levantar perguntas e não certezas.
UMA DÉCADA DE REINVENÇÃO E RELAÇÃO COM A CIDADE, de Luciana Romagnolli
publicado no jornal O Tempo em 31-8-2014
Num fim de tarde deste mês de agosto, enquanto o Espanca! ensaiava no palco do Teatro Alterosa o novo espetáculo, “Dente de Leão”, que estreará no dia 10 de setembro no Centro Cultural Banco do Brasil, os rostos e corpos que se viam em cena já não eram os mesmos que se costumou associar à imagem do grupo mineiro. Apenas Gustavo Bones permanece. Marcelo Castro migrou para a plateia, de onde dirige a montagem. Alexandre de Sena e Glaucia Vandeveld retomam a parceria travada em “Congresso Internacional do Medo” e há três novos colaboradores: Lira Ribas, Raysner de Paula e Gabriela Luiza.
Que Espanca! é esse? Um grupo mutante, transformado ao longo do tempo pelas saídas de Samira Ávila, Paulo Azevedo e, mais recentemente, de Grace Passô, mas que sempre buscou novos parceiros e ideias, e se reinventa agora, ao celebrar dez anos, cada vez mais político e conectado à realidade urbana de Belo Horizonte.
“Dente de Leão” carrega no título uma possível metáfora, elemento fundamental na dramaturgia do grupo. Desta vez, porém, quem a assina é Assis Benevenuto (integrante do Quatroloscinco e ator da nova formação de “Amores Surdos”). A peça coloca em cena três adolescentes, seus pais e professores, às vésperas da feira de ciências da escola. Os traços surreais presentes nos trabalhos anteriores dão lugar a um subtexto mais claramente politizado, enquanto a problematização da própria situação teatral, também sempre presente, reflete os modos como os papéis sociais se distribuem na vida.
“A peça é a extensão no tempo de como a gente vai aprendendo a interpretar e como a gente se constitui representando papéis”, comenta o ator Gustavo Bones. Hoje, o núcleo de criação do grupo é formado por ele, Marcelo Castro e a produtora Aline Vila Real, cercados por uma rede ampla de colaboradores.
“A primeira coisa que marca o Espanca! é um olhar poético perante a realidade”, constata Luiz Fernando Marques, diretor do Grupo XIX. “O Espanca! sempre teve uma dosagem muito interessante entre o lírico e o real. E existe uma pertinência na forma como eles pensam teatro além das obras, com um pensamento amplo de arte”, comenta o paulista.
Urbano. No início de sua trajetória, o grupo mineiro passou menos tempo em Belo Horizonte do que em viagens, impulsionado pela fama dos dois primeiros espetáculos – “‘Por Elise’ foi aquele fogo de artifício enorme”, metaforiza a ex-integrante Grace Passô. “A relação era sempre de dívida com a cidade”, segundo Marcelo Castro. Isso se transformou vertiginosamente com a abertura da sede na rua Aarão Reis, em 2010. “Decidimos ir para o centro para que a cidade interferisse na gente. E foi o que aconteceu. Alterou nosso modo de pensar e a estética do grupo”, constata o ator.
“Seja com os integrantes do Duelo de MCs, seja com outros artistas e eventos de BH, seja ao trazer espetáculos de outras cidades e criar novas trocas, o Espanca! também se torna, a partir da sede nova, um mediador cultural”, identifica a crítica de teatro Julia Guimarães, “no rastro, quem sabe, do que fez o Galpão através do Cine Horto”. Ela cita a idealização de eventos e a cessão do espaço para a Janela de Dramaturgia e a Mostra.Lab como exemplos de ações, e ressalta, a partir disso, o contato do grupo com a cultura urbana e com movimentos de valorização do espaço público partilhado socialmente.
Essa mudança de cenário coincidiu justamente com uma guinada mais política, que desembocou na criação da cena curta “Onde Está o Amarildo?”, em 2013, e agora em “Dente de Leão”. Não bastasse, o Espanca! já aprovou no edital do Rumos Cultural a montagem para 2015 de “Real: Uma Revista Política”. “Acho que a cidade está mais política e nós somos reflexos disso. Fomos nos transformando em agentes políticos”, diz Bones. “Começou a ser difícil ignorar tudo à nossa volta”, comenta Castro.
“A poesia e a linguagem se contaminam pela cidade”, concorda Luiz Fernando Marques, rememorando a última experiência que teve na sede do Espanca!, durante o Acto 3. “Foi incrível, ficamos apenas observando pela porta, como se fosse uma grande tela, a cidade acontecendo”, diz.
Mudanças. A abertura para novos parceiros, como Marques, foi paulatina. “Amores Surdos” teve direção de Rita Clemente. “Congresso Internacional do Medo”, a participação de atores e bailarinos convidados. “Marcha para Zenturo” foi criada em parceria com o Grupo XIX. E “Líquido Tátil” teve texto e direção do argentino Daniel Veronese. “Todos os trabalhos da companhia de alguma forma foram saltos. Sempre fomos um grupo em formação, essa é uma maneira de conseguir amadurecer mesmo tendo iniciado com uma peça de sucesso. É preciso trabalhar muito para isso não boicotar o amadurecimento artístico”, diz Grace.
A saída da dramaturga, atriz e diretora, no ano passado, ainda gera expectativas sobre o caminho que os mineiros trilharão. “É evidente a ancoragem de Grace no grupo por transitar singularmente pelas funções. Vendo-a em cena é como se constituísse ela mesma a melhor tradução do que sua escrita imagina. Por outro lado, sempre restou clara a contribuição decisiva dos integrantes para semear ideias e forjar o pensamento artístico”, observa o crítico paulista Valmir Santos.
Para ele, a capacidade de lidar com substituições e novas adesões configura uma visão “menos romântica do teatro de grupo”. “Desligamentos temporários, migrações ou fusões são dinâmicas cada vez mais comuns entre os coletivos. Às vezes isso deságua em processos de liquefação ou muita solidez”, observa.
Diante da primeira experiência sem Grace, o crítico vê boas possibilidades. “No caso da cena curta ‘Onde Está o Amarildo?’, as perspectivas de que o sopro inventivo não diminuiu são alvissareiras. Tomara que a nova montagem também assim se confirme”, espera.
GERMINADORES DA CENA MINEIRA: Não se pode ignorar o papel incubador tanto da Cia. Clara, na qual antes atuaram Grace Passô, Gustavo Bones e Marcelo Castro, quanto do Galpão Cine Horto, onde estreou a cena curta “Por Elise”, no nascimento do Espanca!. Assim como o grupo recebeu influências dos que vieram anteriormente e criou uma poética original a partir disso, também influenciou fortemente a produção teatral mineira que veio depois.
Gustavo Bones elege “Por Elise” como peça “germinadora” para uma geração de artistas da cidade. “Todo mundo que fez teatro em Belo Horizonte depois se posicionou, seja negando, debochando ou se inspirando”, diz o ator. Marcelo Castro também reconhece essa influência estética. “Muitos grupos mais novos falam isso para a gente”, diz. “Cada peça estabelece um ponto – e a discussão de como fazer parte dali. Quando fizemos ‘Por Elise’, construindo a teatralidade sem cenário nenhum, aí estava o ponto para quem fosse continuar depois”, diz Castro.
“O Espanca! foi – e continua – uma referência para mim e meus contemporâneos e conterrâneos”, diz Sara Pinheiro, dramaturga da Cia. do Chá. Para ela, o frescor juvenil, a elaboração conceitual e a possibilidade de escancarar que se está no teatro sem perder o envolvimento foram motivos do impacto. “Haveria relação entre o humor absurdo de Byron O’Neil e o hipopótamo de ‘Amores Surdos’? O universo delicado apresentado por Raysner de Paula teria se alimentado da poética de Grace? A metalinguagem em textos de Vinícius Souza teria surgido a partir do Espanca!?”, questiona. “Seria leviano instaurar rigidamente relações causais. As referências se misturam e se confundem”, diz.
Integrante do Quatroloscinco, Marcos Coletta não vê uma influência estética tão localizável, mas um universo de discussão em comum. “Um olhar que o Espanca! propôs e que foi ecoado e enriquecido por outros artistas. Não é uma linha reta de evolução, mas um movimento espiralar”, opina. Para ele, a grande questão está na pessoalidade ao contar uma história. “A liberdade de se poder falar das questões do agora, sabendo que tudo já foi contado, mas, mesmo assim, é possível contar, recontar, propor o seu olhar pessoal”, diz.
Texto. O Espanca! surgiu num momento de “refluxo da dramaturgia autoral”, segundo o crítico paulista Valmir Santos, quando o teatro de grupo se fortalecia e, com ele, a encenação. “’Por Elise’ chamou a atenção pela indissociabilidade entre a escrita da peça e a do espetáculo. Palavra e cena construindo poéticas como unha e carne”, analisa Santos.
A cena mineira de então colocava mais foco nos corpos dos atores do que no texto. “O Espanca! trouxe essa ideia de dramaturgia original”, comenta Bones. E, segundo ele, renovou a fábula na produção da cidade.
Sara e Coleta acreditam que o reconhecimento nacional de Grace impulsionou novos autores. “No curso de teatro do Cefar, brincávamos de citar os textos dela”, conta a atriz. “Quando uma jovem dramaturga conquista uma importância nacional com um obra totalmente autoral, isso motiva outros a criarem, mas, principalmente, a exporem seu trabalho”, acredita Coletta.
A ASCENSÃO PELA FÁBULA TEATRAL: Qual foi o momento de maior epifania na trajetória do Espanca!? “Vou chover no molhado: a estreia da cena curta (que deu origem ao espetáculo ‘Por Elise’)”, diz Grace Passô. Quando vocês sentiram que o teatro que faziam realmente comunicava? “Na estreia da cena curta”, responde Marcelo Castro. É unânime.
“Aconteceu uma coisa que é muito rara: sentir a comoção das pessoas presentes antes mesmo de a cena acabar”, recorda o ator. “Vi muita gente chorando na plateia. E a gente estava tão abismado de ter feito aquilo que comecei a pular”, lembra Grace.
“Delicada e sincera, ‘Por Elise’ parece feita para cada espectador”, escreveria Sérgio Sálvia na “Folha de S. Paulo” em outubro de 2005. Naquele momento em que o grupo se formava e se projetava nacionalmente, todos eram muito jovens. “A experiência no Espanca! é parte da minha constituição como adulto. Todos nós estávamos num momento muito intuitivo, era o primeiro texto da Grace. Depois, fomos amadurecendo essas ideias”, diz Gustavo Bones, que contava 19 anos.
Marcelo Castro tinha 22, ainda era estudantes de teatro na UFMG e havia saído do grupo Armatrux. “Eu já tinha visto um espetáculo com a Grace e o Gustavo atuando (na Cia. Clara, dirigida por Anderson Aníbal) e era por ali que queria ir, uma pesquisa de linguagem específica”, lembra Castro.
“O Espanca! foi uma reunião de artistas em momentos muito potentes de todos eles, desde o início”, avalia Grace. “Sempre preocupados em traçar um diálogo lúcido com a produção da cidade e com discussões muito ideológicas sobre o teatro”, diz a ex-integrante.
Outro já fora do grupo, o ator Paulo de Azevedo destaca que eles eram um coletivo de criadores em que todos contribuíam para o discurso e ao propor a cena. “Éramos apaixonados, trabalhamos intensamente e acreditávamos em um projeto comum”, diz Azevedo.
A distinção em relação à Cia. Clara, segundo a crítica e pesquisadora Julia Guimarães, veio do tratamento dramatúrgico, “especialmente dos personagens”. “Se nos primeiros espetáculos da Cia. Clara a ideia muitas vezes era transpor diálogos que aconteciam entre o diretor e o dramaturgo para a cena, ‘Por Elise’ já trazia uma camada de desvio nessas transposições”, diz Julia.
A virada estaria, então, no tingir do cotidiano com tons surreais, que o tornavam mais poético e expressivo. “Sinto que as metáforas e as formas surreais me ajudam a me aproximar de uma espécie de teatralidade da linguagem”, diz Grace. Para isso, sempre foi fundamental a criação de uma fábula poética, como a família insone cujo pai desapareceu (“Amores Surdos”), o congresso de línguas inventadas (“Congresso Internacional do Medo”) ou a festa no futuro entre amigos que falam ao vazio (“Marcha para Zeturo”).
O crítico Valmir Santos observa que esse tipo de dramaturgia sob o signo da poesia não é novidade desde autores como Qorpo-Santo, no século XIX. “Mas a amarração de texto, cena e corpo performativos no Espanca! é que são elas”, diz.
ALTERIDADE E NOVOS GRUPOS NA DÉCADA DE 2.000, de Valmir Santos
publicado no livro Próximo Ato: Teatro de Grupo, do Itau Cultural
A década de 2000 vê espraiar na cena brasileira novos grupos de teatro que, apesar dos verdes anos, se destacam por suas práticas e pensamentos. Eles tangenciam o discurso ideológico junto aos pares veteranos e constroem singularidades estéticas a reboque do ciclo de renascimento dos núcleos artísticos nos anos 1990. O período circunscreve decisivamente os modos de criar e produzir sob o signo da pesquisa. E ainda crava a pauta da luta por políticas públicas para as artes cênicas, tendo no Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, tornado lei em 2002, um divisor de águas decorrente do histórico movimento Arte contra a Barbárie.
Este artigo propõe uma linha do tempo sobre núcleos ativos fora dos esquadros paulista e fluminense. As cidades de Belo Horizonte e Curitiba possuem, por exemplo, agrupamentos profícuos em termos formais e organizacionais, sublinhando suas geografias e culturas sem perder de vista o conteúdo universal das obras. Na capital mineira, o contexto histórico favorece. É berço do Grupo Galpão desde 1982. Possui a Associação Movimento de Teatro de Grupo desde 1991. Sedia dois eventos seminais: o Festival Internacional de Teatro, Palco & Rua (FIT-BH), desde 1994, e o Encontro Mundial das Artes Cênicas (Ecum) desde 1998. Conta com o Galpão Cine Horto, centro cultural gerido pelo mesmo coletivo desde 1998. Esse espaço irradia projetos capazes de atingir verticalmente a produção local, como o Oficinão Residência (consiste em dez meses de convivência entre atores e diretor selecionados por edital e propensos a uma montagem), o Festival de Cenas Curtas (15 minutos que podem vingar na quintessência futura) e o Pé na Rua (processos investigativos levados ao ar livre).
Citam-se quatro equipes que iniciaram suas atividades na década abordada: as companhias Luna Lunera, surgida em 2001, e Clara de Teatro, um ano depois, mais os grupos Espanca! e Teatro Invertido, ambos concebidos em 2004. Todos emanam um impulso juvenil em suas origens, a predisposição ao risco que vai determinar o frescor de suas potencialidades poéticas na construção do texto e da cena. Em comum, carregam também a angústia da influência do Galpão – para usar uma expressão da teoria literária referente à incidência dos legados.
Suas estruturas organizacionais incluem uma sede, a pesquisa e a criação de espetáculos, além de uma capacidade incrível para articular apoios e patrocínios e desdobrar suas realizações em projetos extensivos à comunidade ou em níveis interestadual e internacional, retroalimentando suas bases criativas.
Os participantes do início da Companhia Luna Lunera são egressos do Centro de Formação Artística da Fundação Clóvis Salgado Palácio das Artes, daí a frequência com que trabalham com diretores convidados, tendência atualmente em mutação. Entre os cinco espetáculos produzidos, figuram um Nelson Rodrigues, Perdona-Me por Me Traíres (2001), dirigido por Kalluh Araújo; Nesta Data Querida (2003), dobradinha com a Maldita Companhia de Teatro, outro núcleo expoente surgido em 2002, por Rita Clemente; Não Desperdice Sua Única Vida ou… (2005), por Cida Falabella, outro nome-chave, idealizadora da Associação Zona de Arte da Periferia – Zap 18; e Aqueles Dois (2007), o trabalho que lhe rendeu mais visibilidade fora de Minas, justamente uma criação colaborativa assinada pela Luna Lunera.
A Companhia Clara de Teatro monta seis peças, todas com dramaturgia do também diretor e cofundador Anderson Aníbal. São elas: Todas as Belezas do Mundo (2002), Coisas Invisíveis (2003), Cinema (2005), Alguns Leões Falam (2007), Vilarejo do Peixe Vermelho (2008) e Nada Aconteceu (2009). Como anotamos na edição independente daqueles textos:
“Os conflitos jamais são expostos ao pé da letra. Eles irrompem de modo subliminar, pendor antidramático de Aníbal que deixa transparecer o seu sentimento de mundo em cada frase. Ele não quer crer na impossibilidade do humano, no culto
ao niilismo. Sua escrita para o teatro precisa acreditar que este é o verbo principal
para transformar alguma coisa em realidade, como confere a uma das suas pessoas
inventadas. As didascálias ancoram mais objetivamente esses lampejos filosóficos
no afã de encontrar criadores dispostos. Resultam rubricas de incitação, não o mero
apontamento técnico.” [SANTOS, Valmir. Acenos, apud ANÍBAL, Anderson. Vilarejo do Peixe Vermelho. Belo Horizonte: Caixa Clara, 2010, p. 21-25.]
A atriz, autora e diretora Grace Passô chegou a integrar a Clara e depois trilhou caminho distinto compondo o tripé do Grupo Espanca! ao lado de Gustavo Bones e Marcelo Castro. Por Elise, seu primeiro espetáculo, é fruto do Festival Cenas Curtas, evoluindo em 2005 para uma montagem explosiva em concisões verbal e física. Delineia-se, desde já, a camada fantástica nos diálogos, narrativas e situações impregnadas de realismo no inter-relacionamento de uma dona de casa, um cão, um homem, uma mulher, um lixeiro e um funcionário. Samira Ávila e Paulo Azevedo são, à época, outras vozes embrionárias desse universo particular regido por Passô, em seus abacates que espancam doce no chão do quintal ou sobre a cabeça dos passantes, com atalho para a dolência dos versos de uma Florbela Espanca, se se quiser auscultar sonoridades outras. A clave poética habita as criações seguintes, todas com dramaturgia da mesma lavra, às vezes em colaboração com os atores: Amores Surdos (2006), dirigida por Rita Clemente, O Congresso Internacional do Medo (2008), por Passô, e Marcha para Zenturo (2010), por Luiz Fernando Marques, correalização do Grupo XIX de Teatro, de São Paulo, com o qual o coletivo mineiro guarda afinidades estéticas e ideológicas.
O Grupo Teatro Invertido, que vem à luz no curso de graduação em artes cênicas da UFMG, cumpre um percurso conscientemente não linear nos cinco espetáculos que produz, um nomadismo conceitual e temático que caracteriza sua linguagem multifacetária e afeita aos recursos da performance e da instalação. Constam Nossa Pequena Mahagonny (2003), encenada ao ar livre por Leninse Martins, com dramaturgia colaborativa; Lugar Cativo (2004) por Cristiano Peixoto, em associação ao projeto Cena 3×4; Medeiazonamorta, (2006), ocupação/intervenção em espaços urbanos abandonados, por Amaury Borges; Proibido Retornar (2009), a saga de um retirante na capital, direção também coletiva; e Estado de Coma, por Rogério Araújo e dramaturgia de Rita Maia, montagem que radicaliza vários aspectos da relação com o espectador. Num espaço não convencional, o público senta-se em mesas rentes às paredes. Transcorre como que um jantar no qual desfilam tipos obcecados pelo que levam, ou não, ao estômago, sob as ordens de um médico-guru, narrador sarcástico diante daquelas cabeças que digerem tudo quanto é porcaria (trans)figurada. O alvo é a ditadura da forma corporal, e com ela o ocaso do espírito e das ideias.
Quando o Festival de Teatro de Curitiba lança a sua mostra paralela, o Fringe, em 1998, a
produção da capital paranaense começa a ser vista por espectadores de outros estados e,
logo, encarada com bastante reticência. A tônica sexista e as paródias baratas da telenovela
ou do blockbuster no cinema – pior, com a anuência do público ávido por diversão a qualquer custo – minam as esperanças. Esse cenário, porém, muda substancialmente. Hoje, as iniciativas oportunistas perdem terreno para uma geração mais corajosa de criadores. Na 20ª edição do Festival de Curitiba, em 2011, a percepção é de que finalmente a dimensão do teatro de grupo aporta de vez naquelas terras, e não apenas de forma isolada. A rigor, os conjuntos já atuam por lá desde a década anterior, mas só a partir de 2006 eles se organizam como movimento que
“realiza práticas de pesquisa continuada em projetos de caráter investigativo,
diferenciando-se das práticas do teatro comercial, institucional, empresarial e
acadêmico, e que baseia seus modos de produção no compartilhamento ético da
conduta profissional.”
Lê-se no site [ movimentodeteatrodegrupo.blogspot.com. Acessado em 18 abr. 2011] – que aglutina A Armadilha, A Cruel, Antropofocus™, Arte da Comédia, Companhia dos Palhaços, CiaSenhas de Teatro, companhia brasileira de teatro (que adota minúsculas), Companhia Silenciosa, Confraria Cênica, Elenco de Ouro, Espaço Cênico, Grupo Obragem de Teatro, Processo Multiartes, Subjétil, Súbita e Teatro de Breque – batismos, cenas e suportes, os mais variados, que dão alento às criações paranaenses. São equipes que se
apropriam das veredas abertas por Edson Bueno e seu Grupo Delírio Companhia de Teatro (1984), por Felipe Hirsch e Guilherme Weber na Sutil Companhia de Teatro (1993), com intensa produtividade no Rio de Janeiro e em São Paulo, por Paulo Biscaia Filho e sua Companhia Vigor Mortis (1997), entre outros.
No final dos anos 1990, o ator e diretor Marcio Abreu, então artisticamente próximo da Sutil, firma com outros parceiros a companhia brasileira de teatro. As metas traçadas são pela dramaturgia original; releitura de clássicos; e encenação e tradução de dramaturgia contemporânea inédita. Em Volta ao Dia (2003), por exemplo, expõe-se a alteridade com um sentido de urgência mediado pela vigília atmosférica das palavras, em que o universo literário de Julio Cortázar serve a uma abordagem original da delicadeza, da dor e do humor femininos.
A maiúscula companhia brasileira de teatro soma até agora uma dezena de peças com um
núcleo profissional multidisciplinar alicerçado por Giovana Soar, Nadja Naira, Ranieri Gonzalez, Rodrigo Ferrarini, Fernando Marés e Cássia Damasceno, entre outros. Destaca-se a participação especial de Luis Melo em Apenas o Fim do Mundo (2006), texto do francês Jean-Luc Lagarce, e O que Eu Gostaria de Dizer (2008), escrito a oito mãos pelos intérpretes Bianca Ramoneda, Melo e Márcio Vito, e Abreu, responsável por todas as direções. Há que se mencionar também obras recentes que reafirmam o sopro que vem de Curitiba, como a dobradinha de 2010: Vida, texto de Abreu, Soar e Naira, inspirado na obra do escritor Paulo Leminski, e Oxigênio, do russo Ivan Viripaev, projeto que incorporou os músicos e atores convidados Patrícia Kamis, Rodrigo Bolzan, Gabriel Schwartz e Vadeco.
Criada em 1999 por artistas e pesquisadores em artes cênicas, a CiaSenhas de Teatro cola-se à ação física como o seu nome, que subtrai o ponto para juntar, estabelecer ou friccionar pontes em nome de uma dramaturgia do corpo, como em Devorateme, de 2001, que discorre sobre a miséria humana que ganha as ruas. Texto ou textura que, como palavra, é expandida para a ação no espaço físico, longe do palco italiano, e vai parar na viela de paralelepípedos em que está localizada a sua sede, no centro velho da cidade, como noticia Homem Piano – uma Instalação para a Memória (2010), um solo de Luiz Bertazzo com direção e escrita de Sueli Araujo. Nesse ínterim, lembramos de dois trabalhos importantes, uma adaptação de Antígona, Reduzida e Ampliada (2006), Sófocles relido com forte impacto visual e sonoro, e Delicadas Embalagens (2008), a construção de um ambiente cênico íntimo e artificial como o da família desmontada em cena. Como demais integrantes, entre atores, músicos e produtores, estão Anne Celli, Ary Giordani, Cinthia Kunifas, Greice Barros, Marcia Moraes, Neto Machado e Patrícia Saravy.
Em paralelo, a CiaSenhas é idealizadora e realizadora da Mostra Cena Breve Curitiba – A
Linguagem dos Grupos de Teatro, que acontece anualmente desde 2005. O espelhamento
declarado é com o mineiro Festival Cenas Curtas e com a vontade de criar um espaço de
compartilhamento de ideias e experimentações estéticas. Outro projeto que capitaneia
energias é o do Núcleo de Dramaturgia Sesi-British Council, que desde 2009 é coordenado
pela Marcos Damaceno Companhia de Teatro e tem na figura do encenador, cenógrafo,
desenhista de luz e autor Roberto Alvim um dos principais pilares de formação, desestabilizador de paradigmas para as múltiplas narrativas da palavra e da imagem. O próprio Damaceno, que funda sua companhia em 2003 com a atriz Rosana Stavis, é um entusiasta e insistente encenador de seus próprios textos, Água Revolta (2003) e Sobre Tempos Fechados (2007), ou de escritores contemporâneos como: Jon Fosse, Sonho de Outono (2005); Sarah Kane, Psicose 4h48 (2004); e o paranaense Marcelo Bourscheid, Antes do Fim (2011), sob orientação de Alvim, que também marca presença naquele mesmo ano, no Fringe, com a direção de Hieronymus nas Masmorras, de Luiz Felipe Leprevost, autor oriundo do referido núcleo de dramaturgia, um espetáculo solo interpretado por Juliana Galdino em estreia nacional.
Mais acima no mapa brasileiro, no Nordeste, avistamos o Grupo de Teatro Clowns de
Shakespeare. Desde 1993, seus integrantes trilham caminho de fusão da cultura popular
com uma comicidade inerente à dramaturgia de William Shakespeare. Não são aplicadas
propriamente as técnicas de clown em todos os espetáculos, mas, antes, a essência
transgressora de quem olha o mundo através da “lente distorcida do lirismo”. O musical Muito Barulho por Nada (2003) traz um elenco em pleno domínio do canto e dos instrumentos, sem descuidar dos embates da palavra, o bate e rebate de seres que se amam ou se odeiam. Fernando Yamamoto divide a direção com Eduardo Moreira, um dos fundadores do Grupo Galpão. Marco França é um comediante e um músico de mão-cheia, cuja criatividade perpassa outras peças como o primeiro infantil do Clowns, Fábulas (2006), que conta quatro histórias inspiradas nas narrações de Esopo e La Fontaine, selecionadas por Monteiro Lobato, e O Casamento, adaptação da peça homônima de Brecht que desconstrói os protocolos sociais sem cerimônias, corroendo as hipocrisias sociais.
A influência brechtiana, sob o ponto de vista estético e o crítico em relação à sociedade, será descortinada pelo espetáculo mais sofisticado do grupo, O Capitão e a Sereia, baseado na obra ilustrada por André Neves. A encenação é sobre um sertanejo de nome Marinho que se torna exímio contador de histórias a respeito do mar, a ponto de criar uma trupe mambembe, a Tropega, mas Não Escorrega, e, certo dia, abandonar a lida para finalmente encontrar de fato o mar. O espetáculo dirigido por Yamamoto desvia desse roteiro para inserir a si mesmo, como companhia, no que tange ao dilema – o desfalque do protagonista: seguir com sua arte ou recuar dela, fazer acordos ou estacionar. Em 2011, um projeto ambicioso realinha o grupo potiguar à fieira do bardo inglês: Sua Incelença, Ricardo III, adaptação da tragédia com a assinatura do encenador Gabriel Villela, em espetáculo levado ao ar livre. Entre os atores do coletivo, estão Camille Carvalho, César
Ferrario, Dudu Galvão, Joel Monteiro, Paula Queiroz, Renata Kaiser e Titina Medeiros.
Em Fortaleza, o Grupo Bagaceira nasce em 2000, levado pela criação amadora de esquetes
cômicos, um filão tradicional na capital cearense, e aos poucos apruma profissionalmente o teatro de pesquisa, assumindo seus textos e direções. Entre as montagens, figuram Lesados (2004), escrito por Rafael Martins e dirigido pelo convidado Yuri Yamamoto (do Clowns de Shakespeare), um parceiro recorrente, como em O Realejo (2005), também de Martins, e Meire Love (2006), em parceria com Suzy Élida Lins, a autora. Em 2010, o Bagaceira marcou seus dez anos com a montagem de InCerto, nova dobradinha Martins/Yamamoto, que dessa vez fala das entranhas do processo criativo, das afinidades e exasperações coletivas e individuais. Os demais atores são Demick Lopes, Rogério Mesquita, Samya de Lavor e Tatiana Amorim.
Outra referência em Fortaleza é o Teatro Máquina, batizado Ba-guá Companhia de Teatro,
em 2003, mas optando posteriormente por mudar de nome para afinar com a sua filiação
brechtiana. Tal tendência ganhou corpo em Quanto Custa o Ferro? (2003), inspirado em texto homônimo de Bertolt Brecht e codirigido por Fran Teixeira e Edilberto Mendes, Leonce+Lena (2005), de Georg Büchner e encenação de Teixeira, que também assina as duas funções em O Cantil (2008) e as divide com Márcio Medeiros em Répéter (2009), para citar alguns trabalhos que, às vezes, fazem interface com a performance e a dança.
No mesmo ano de 2003, em Recife, a reunião de artistas em torno do espetáculo Angu de
Sangue (2004), adaptação de contos do pernambucano Marcelino Freire, com direção de
Marcondes Lima, dá origem ao Coletivo Angu de Teatro. O repertório valoriza a presença
dos intérpretes, combinando denúncia social e viés homoerótico como tema e, na forma,
contornos da estética do grotesco, com brechas para a projeção de imagens. Vieram Ópera
(2007), com texto de Newton Moreno, e Rasif: Mar que Arrebenta (2008), também a partir dos escritos de Freire e sempre com encenação do também figurinista e cenógrafo Lima, professor universitário e artista central na cena pernambucana. Desde 1986, Lima participa do Mão Molenga Teatro de Boneca, cujos integrantes Fábio Caio, Carla Denise e Fátima Caio costumam convergir para os espetáculos do Angu, ao lado de Ivo Barreto, André Brasileiro, Vavá Schön-Paulino, Márcia Cruz, Gheuza Sena, Jathyles Miranda, Hermila Guedes, Arilson Lopes e Tadeu Gondim, entre outros.
O paradigma do teatro de grupo que contamina outras praças do país mobiliza os alunos
oriundos do curso de artes cênicas da Ufpe, que dão liga ao Grupo Magiluth em 2004. Entre os experimentos trazidos a público, estão Ato, embrionário daquele mesmo ano, adaptação da peça curta de Samuel Beckett Ato sem Palavras, direção de Thiago Liberdade, que explora a linguagem do clown; Corra (2007), texto e direção de Marcelo de Oliveira, em cima do conceito do ator narrador e do efeito borboleta presente na Teoria do Caos; 1 Torto (2010), solo performático concebido por Giordano Castro e dirigido por Pedro Wagner, que critica a distorção sentimental dos reality shows. No ano seguinte, o Magiluth estreia sua versão para O Canto de Gregório, de Paulo Santoro, autor montado por Antunes Filho em 2004, aqui sob direção de Pedro Vilela, com interpretações de Castro, Pedro Wagner, Erivaldo Oliveira e Lucas Torres.
No Centro-Oeste do país, a Companhia Teatro Mosaico, de Cuiabá, curiosamente tem sua
origem no Rio de Janeiro, em 1995. É para lá que o ator mato-grossense Sandro Lucose ruma para cursar faculdade na UniRio. Ele retorna em 2002, agora para deitar raízes de vez em sua cidade. Em 2006, o núcleo monta a primeira peça escrita por Ariano Suassuna, Uma Mulher Vestida de Sol, de 1947. A única tragédia do autor é transposta para um espaço propício à aridez daquela peleja familiar, a Chapada dos Guimarães, com direção de Maira Jeannyse, sob recortes da commedia dell’arte e do barroco espanhol. Em 2009, o Mosaico visita a obra de outro expoente da dramaturgia brasileira, Nelson Rodrigues, ousando com uma das suas peças míticas mais difíceis de montar, Anjo Negro, dirigida por Lucose, que no ano seguinte integrou a mostra principal do Festival de Curitiba.
A cidade como palco que extrapola o edifício tradicional, que rompe a relação frontal com o espectador sentado e se deixa ocupar em suas artérias públicas, é essa arquitetura
urbana que interessa ao Teatro do Concreto, o grupo de Brasília criado em 2003 por artistas de diversas cidades-satélites do Distrito Federal. Entre seus principais trabalhos calcados em processos colaborativos está Diário do Maldito (2006), que urde a biografia e a obra de Plínio Marcos em temporada realizada principalmente numa oficina mecânica. Entre os integrantes do núcleo aparecem Aline Seabra, Alonso Bento, Daniel Pitanga, Francis Wilker, Gleide Firmino e Hugo Cabral.
Em Florianópolis, o ERRO Grupo também envereda pelo espaço social, interferindo nos fluxos cotidianos, construindo situações que dialoguem com o cidadão e o incitem, despertando a consciência crítica à maneira das estratégias artísticas do grupo político-performático argentino H.I.J.O.S. (Hijos por la Identidad e Justicia contra el Olvido y el Silencio). Como em Formas de Brincar (2010), o 17º espetáculo combinado à intervenção desde o início das atividades do coletivo, em 2001. O foco é a intersecção da arte com o cotidiano, pondo em xeque a “objetificação” do corpo. São usados recursos de jogos que permeiam o ambiente e propõem sentidos lúdicos com ações hibridas entre artes cênicas e artes plásticas. Um trabalho concebido por Luana Raiter e Pedro Bennaton, sob direção deste e com os atores Paula Felitto, Sarah Ferreira, Michel Marques, Juarez Nunes e a própria Raiter.
As linhas deste artigo não dão conta, obviamente, das múltiplas experiências artísticas em
voga na geografia brasileira para além das divisas de São Paulo e Rio de Janeiro. Elas intentam aproximações à década passada e à safra de grupos em seus primeiros passos, ávidos por linguagens e conceitos consistentes ou a caminho de alcançá-los. Cada qual em seu quintal, mas sob o mesmo céu do outro – a miríade de núcleos que está longe de corresponder à forma e ao conteúdo substanciados. Disseminam-se, no entanto, conquistas mínimas de políticas públicas – em tempos de paradoxal desbotamento ideológico, inclusive no meio teatral – e mais consciência da pesquisa continuada e dos princípios que ela demanda.
Valmir Santos é jornalista cultural desde 1992 e edita o site independente Teatrojornal.
Publicou reportagens e crítica nos veículos Folha de S.Paulo, Bravo! e Valor Econômico. Autor de históricos dos grupos Parlapatões (SP), Armazém Cia. de Teatro (RJ), Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz (RS) e Grupo XIX de Teatro (SP). Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da USP.
O TEXTO E A FARPA: DIVAGAÇÕES SOBRE A PRODUÇÃO DRAMATÚRGICA NO ESPANCA!, de Vinícius Souza
publicado no Dossiê Espanca! do site Horizonte da Cena em setembro de 2015
Farpa é uma boa palavra. Pelo menos aqui, com meu sotaque mineiro da capital, o vocábulo com seu érre forte, como se diz na fonética, parece ser engolido garganta à dentro, me arranhando as cordas, rumo a certo interior. Ao mesmo tempo, a palavra é feita da vogal mais aberta de todas: lançada, em arreganho, para o ar de fora, para o mundo externo. Farpa é uma palavra cortante, pontiaguda, tal qual a pequena lasca, estilhaço mínimo da madeira, à espreita da primeira superfície distraída. E quem é que nunca se distraiu? Farpa é uma tira miúda que berra! Quem já teve a pele perfurada sabe disso. A lasca parece inofensiva de tão pequena, mas impede qualquer continuidade automática do cotidiano. Atravessada na carne, grita sua existência enquanto nos lembra da nossa. Que lasca! Talvez venha daí a expressão que eu costumava ouvir no quintal de casa: Tô lascado! Mas desta vez, longe de um furo no dedo ou coisa parecida, tratava-se da vida em perigo, em estado de urgência. Várias vezes eu estive lascado – irremediável condição de quem está vivo. Para mim, texto do Espanca! é lasca, é farpa.
Eu ainda nem pensava em estruturas dramatúrgicas quando, nos idos de 2005, assisti a “Por Elise”, primeira investida teatral do Grupo Espanca! Revi a peça alguns anos depois, e costumo ainda folhear as páginas da primeira publicação, lançada como edição da autora, Grace Passô, no mesmo ano da estreia. Enquanto a peça inaugurava para mim o contato com dramaturgias contemporâneas, inaugurava em Belo Horizonte a existência de um teatro violentamente doce, como se acostumou chamá-lo por aí. O impacto que a peça me causou, um espectador de olhar novo e curioso, parece não ter sido diferente daquele que tomou a cidade de súbito: um teatro que falava com miudeza das coisas mais profundas. A simplicidade e poesia das palavras, a abordagem de universos cotidianos, a economia de elementos cênicos e a proximidade com o espectador já vinham se desenhando nas propostas da Cia Clara, dirigida por Anderson Aníbal, na qual trabalharam anteriormente alguns dos integrantes do grupo. No entanto, foi na construção dramática e cênica do Espanca! que esses elementos foram deflagrados de maneira radical, tanto no questionamento das convenções teatrais, quanto na ampliação das temáticas e significações do mundo. Esses aspectos, junto ao uso da metáfora e ao recurso da metalinguagem, marcariam a dramaturgia do Espanca! daí adiante.
Dos seis textos montados pelo grupo, de 2004 até 2014, só “Líquido Tátil” (2012) foi escrito por um dramaturgo estrangeiro, o argentino Daniel Veronese, e finalizado antes do processo de montagem – inclusive já tendo sido montado bem antes em Buenos Aires. Todos os outros são assinados por dramaturgos mineiros e estreados pelo grupo. Grace Passô, que integrou o coletivo durante oito anos, escreveu “Por Elise” (2005), “Amores Surdos” (2006), “Congresso Internacional do Medo” (2008) e “Marcha para Zenturo” (2010). Já “Dente de Leão” (2014) é assinado por Assis Benevenuto. Influenciados pelos processos colaborativos que surgiram na capital mineira no início do século XXI, onde se destaca a horizontalidade entre os artistas na criação de um discurso coletivo que valorize as funções e vozes individuais, os textos de Grace e Assis foram elaborados junto à criação das cenas, em um diálogo direto com diretores e atores. Ainda que na maioria das vezes fragmentos de textos ou roteiros da peça estivessem já esboçados previamente à cena, a finalização dramatúrgica se deu concomitante à finalização da montagem cênica. Inclusive sendo modificada ou reconstruída ao longo dos tempos, no percurso da peça, como se tornou recorrente na produção teatral contemporânea. Talvez por isso, por esse modo de criação do grupo, seja tão difícil qualquer enquadramento do que seriam as dramaturgias dessas peças. Reduzir aqui o conceito de texto teatral ao que foi escrito no papel ou às palavras que são ditas pelos atores seria negar a existência de corporeidades, atmosferas, sensualidades e pulsões que são tão fundamentais no processo de construção e arranjo de sentidos quanto o texto propriamente dito, aquele que foi publicado em livro. Deste modo, se me ponho a divagar sobre as dramaturgias no Espanca!, falo não só daquilo que li no papel, mas daquilo que li e senti na cena. Estas duas instâncias chamadas pelo professor francês Joseph Danan de Dramaturgia 1 – o texto que foi escrito previamente à montagem e lhe dá estrutura, e Dramaturgia 2 – o encontro deste texto com todos os demais textos da cena (ou a dramaturgia da encenação), passam por mim em idas e vindas tão ligeiras que tornam-se uma só. É deste emaranhado dramatúrgico que trato adiante.
“Por Elise” poderia se resumir como pequenos encontros entre moradores e passantes de uma rua qualquer; “Amores Surdos” como a família que descobre a existência de um hipopótamo em um de seus aposentos; “Congresso Internacional do Medo” como uma reunião de congressistas que falam diferentes línguas e discutem assuntos da humanidade; “Marcha para Zenturo” como uma festa de réveillon, entre amigos, num futuro distante; “Dente de Leão” como um grupo de estudantes que resolve fazer algo diferente na tradicional Feira de Ciências. Os textos poderiam ser assim resumidos não fosse a extrema complexidade que revelam ao unir aspectos que, à primeira vez, parecem dicotômicos ou contrastantes demais para estarem tão próximos ou combinados. Tal qual a farpa de que falava – que é ao mesmo tempo para dentro e para fora; delicada e agressiva –, a dramaturgia produzida por Grace e Assis no Espanca! parece fazer conviver a palavra e o silêncio, o grande e o pequeno, o banal e o extraordinário, o real e o ficcional, o poético e o coloquial, o íntimo e o coletivo, a morte e a vida.
Em “Congresso Internacional do Medo” o mesmo sangue que é derramado no nascimento de uma criança é aquele que banha a morte da personagem Tradutora; a linguagem que possibilita os discursos é a mesma que causa sua distorção; o conhecimento almejado e compartilhado pelos convidados para a mesa do congresso é, ao mesmo tempo, a prova da nossa irremediável ignorância frente aos enigmas da existência; o que há de mais singular em cada um dos congressistas acaba por constituir o que chamamos de universal. A história fantástica de “Amores Surdos” é também só mais uma história comum; o minimalismo de seu espaço geométrico e organizado é também operístico, dramático e lamacento; o cômico e o trágico em inacreditável convivência; os vizinhos bem letrados, e suas notas musicais eruditas, amanhecem junto com os populares passos de sapateado e com os desejos por pequis. A extrema e às vezes agressiva proximidade entre os membros da família é também sua distância, sua cegueira e surdez. Em “Amores Surdos” foi o Pequeno quem trouxe o Grande Bicho. A festa e o protesto, o clássico e o contemporâneo, o teatral e o cotidiano habitam juntos a cerimônia de réveillon do grupo de amigos em “Marcha para Zenturo”. O encontro é, paradoxalmente, o desencontro dos personagens – não se tocam, nem se falam diretamente por conta do delay que há entre eles. No entanto, compartilham o mesmo espaço. Compartilhamento que também se deu no processo de criação da obra, feita entre dois grupos: o Espanca! e o grupo XIX, de São Paulo. A peça acabou por combinar diferentes percursos teatrais e geográficos. “Por Elise” traz o dia caloroso da correria cotidiana, mas também o palco nu, escuro e noturno. Lá estão os silenciosos gestos de lagoa, mas também as letras garrafais de alguém CORRENDO EM DIREÇÃO AO MAR; estão os três pontos de conversas sem assunto, mas também os bifes de uma dona de casa que tem mil historinhas pra contar. Os personagens convivem, mas estão sós. Eles estão na rua, espaço público por excelência, mas também nos seus silêncios particulares; se protegem para não se envolver, e se envolvem pra não se proteger tanto; colocam cacos de vidro em seus muros, mas não conseguem abater suas galinhas. Em “Por Elise”, o fim é o começo.
Em “Dente de Leão” a primeira fala do texto, dita pelo personagem Igor, é: “Por favor, desliguem seus celulares. O teatro vai começar… To be or not to be, that’s the question…”. Poderia ser uma estratégia brechtiana para dizer aos espectadores que aqui não há ilusão, que estamos no teatro, que é preciso estar acordado e esperto ao se que se passa. Mas não. O personagem está sim imerso numa realidade ficcional, na qual nós somos também encantadoramente mergulhados. Mas nem por isso estamos hipnotizados e passivos frente a uma tela de movimentos. Convidando pra estar ao mesmo tempo dentro da ficção e fora dela, a dramaturgia de Assis possibilita camadas de significação e jogo entre a fábula e a representação, os espaços reais e os ficcionais, os papeis e os sujeitos, os personagens e os atores, a cena e o espectador. Esse jogo de composição entre realidade e ficção, também magistralmente manuseado pela Grace nas demais peças, é um dos aspectos mais fortes nas dramaturgias criadas para o grupo. Aqui, de novo, isso traz a possibilidade da convivência de contextos distintos e contrastantes, sem anulação ou perda de um deles. Ao contrário: dá-se a criação de um painel de possíveis realidades simultâneas, linhas de sentido em diferentes direções e cruzamentos. Em “Amores Surdos”, um dos personagens fala com os espectadores. Quando pensamos que houve uma martelada na construção ficcional, outra personagem vem e indica que ele é sonâmbulo, que quando sonha habita outra realidade. Num susto então aquilo que parecia a martelada era na verdade mais uma camada de reboco sobre a construção. O diretor e dramaturgo Marcio Abreu, ainda sobre Amores Surdos, disse que “convive neste e em outros mecanismos do texto o jogo de realidades múltiplas que fortalece o caráter ficcional, expandindo nossa realidade de espectadores ativos numa platéia de teatro”. Levando em consideração esses mecanismos, as dramaturgias de Grace e Assis montadas pelo Espanca! não parecem, dentro do panorama das escritas teatrais pós-modernas, detonar o drama e seus elementos tradicionais (como a mimese e a fábula), mas incluí-lo em suas composições, reformá-lo, e sobretudo, combinar suas potências a outras possibilidades mais épicas e performáticas.
As dramaturgias do Espanca! foram preparadas para nos manter vivos, para nos lembrar da existência, da emergência do presente; estão cheias do que Jean-Pierre Sarrazac chamou de forma-desvio: esse escape da forma dramática em busca do espanto, do estranhamento, de uma aproximação mais radical da realidade. Mas, aqui, o desvio se dá sem ser desviado; se dá sem desfazer a linha fabular, dela fazendo parte. O inverso também acontece: o drama, este que parece o rotineiro, é ele o próprio desvio. Em “Por Elise”, o cão é quem corre para fora do palco, é quem surge no fim da peça e late para a plateia – mas, ora! é natural que um cão não siga convenções teatrais, não se limite ao espaço cênico, à marca da luz: cão é que não é oco, é o que não está oco. Em “Marcha pra Zenturo”, Marco é o único dos personagens da trama que se aproxima da plateia, é na verdade quem pode se aproximar dela porque também é o único que está doente – a doença de viver o tempo presente, de estar aqui e agora – como também estão os espectadores.
Depois de um tempo, quando então eu já pensava em estruturas dramatúrgicas, me perguntei se um texto teatral poderia ser ao mesmo tempo dramático e performático, político e poético, simples e complexo, e tantos outros aspectos que por vezes são dados como opostos. Ou ainda, se dramaturgia poderia combinar tanto com papel quanto com palco. As dramaturgias aqui divagadas me aparecem como resultados dessas possíveis convivências de linguagens, olhares, estilos, modos e fins. Tanto Grace Passô quanto Assis Benevenuto fazem parte da nova geração de autores teatrais mineiros que se caracteriza especialmente por resignificar e valorizar o texto no teatro. Não mais um texto morto que não consegue dizer do tempo em que estamos ou centralizador de todos os elementos teatrais, mas um texto poroso, flexível, aberto a uma infinidade de recepções, vivo. Ler os textos do Espanca! (os quatro primeiros foram publicados em 2012 pela editora Cobogó) é um convite a fazer das palavras matéria, é desejá-las no ar, é experimentar a fisicalidade das vozes e dos silêncios. Assim como suas encenações são um convite a notar cuidadosamente um arranjo de palavras que em geral deixamos para o caderno, é deixar que as letras criem espontaneamente formas e imagens, que elas revirem os sentidos, redescubram significados. Foi talvez por isso que desde Por Elise, as dramaturgias do Espanca! tem impressionado plateias de todo o país e marcado de maneira decisiva a dramaturgia mineira contemporânea – seja por desenrolar uma linhagem de escrita que espanca, mas espanca doce; seja por servir de ponto de referência para escritas que caminham rumo a outras direções estéticas e temáticas. Por fim, devo dizer que essas dramaturgias, ao promover essa radical convivência de contrastes, aparecem-me como quem aponta que talvez a nossa existência também seja assim; que eles, os textos, só tentam combinar aquilo que já está combinado na vida – essa farpa de madeira intensa.
VINÍCIUS SOUZA é dramaturgo, ator, diretor e pesquisador teatral. Mestrando em Teatro pela UFMG. Coordenador do Janela de Dramaturgia.
A RELAÇÃO CONVIVIAL NA BASE DA FÁBULA CONTEMPORÂNEA, de Luciana Romagnolli
publicado no Dossiê Espanca! do site Horizonte da Cena em setembro de 2015
Logo no início de “Amores Surdos”, Joaquim, o filho sonâmbulo da família, olha diretamente para a plateia e lhe diz:
“Boa noite. Obrigado por terem vindo. Desculpem começar assim, cortando o sonho de vocês, mas para que tanto suspense? Essa é só mais uma história de uma família comum, que toma café, em que um briga com o outro, em que um adoece, enfim: com nossos problemas cotidianos” (PASSÔ, 2012a, p. 18).
O pacto do grupo Espanca! com o espectador é assim deliberadamente declarado em termos de mútua consciência da situação de convívio teatral (a copresença de atores e espectadores no mesmo espaço/tempo) e aceitação da construção de uma ilusão compartilhada. Joaquim, sonâmbulo, prossegue:
“Vocês são grandes, eu sou grande, ninguém aqui é Pequeno… todo mundo aqui sabe onde está. Todos sabem que amanhã eu vou repetir as mesmas coisas que eu estou falando agora. (…) Vocês sabem: em alguma hora, o telefone vai tocar aí (apontando o espaço da plateia), algumas pessoas vão pensar: ‘Nossa, que falta de educação deixar o telefone ligado aqui!’ Aí o dono ou vai desligar o telefone para ser fiel à educação que sua família lhe deu, ou vai, sem culpa, atender, falando baixo; ‘Oi, tô em outra realidade! Depois te ligo!’. Alguns de nós vão pensar: ‘Será que desliguei meu telefone?’ E nós vamos continuar nossa história, nossos dias comuns. (…) No final, haverá aplausos” (PASSÔ, 2012a, pp.18-19).
O teatro, para o Espanca!, expõe-se aqui em sua dupla constituição de presença e representação, materialidade e ilusão. Trazer essa configuração à superfície dramatúrgica é um piscar de olhos para um espectador consciente, um acordo possível com um espectador cético de um tempo complexo em que a ilusão alastrou-se pelas artes digitais e toma a forma do 3D 4K, alargando os limites do realismo. O teatro, em sua artesania precária, pode não ser o lugar onde a representação do real é mais verossímil (o realismo no teatro é outra coisa, como dirá adiante um personagem de “O Líquido Tátil”), mas certamente é onde dois seres humanos podem trocar um olhar cúmplice para pactuar o jogo da ficção.
Com essa qualidade inerente à arte teatral posta em evidencia, o Espanca! forja suas primeiras peças. “Por Elise”, a primogênita, já trazia também no início um endereçamento de fala direta para o espectador pelo eixo extraficcional, embora num lugar impreciso se é a personagem ou a atriz quem diz: “Historinhas eu tenho mil. Poderia contar várias aqui pra vocês”. Desde esse primeiro trabalho, cuja estreia ocorreu há dez anos, em 2005, já formulava-se o gesto de reconhecimento do espectador a partir do qual o contrato de ficção é proposto. Obviamente, a estratégia não é exclusiva do Espanca! e pode ser vislumbrada em outros grupos contemporâneos, como a Companhia Brasileira (“Vida”), e na geração seguinte em Minas Gerais, fortemente atingida pela reverberação do trabalho de Grace Passô, Marcelo Castro, Gustavo Bones, Samira Ávila e Paulo Azevedo – como o Quatroloscinco em sua estreia “É Só uma Formalidade”.
No prefácio à edição impressa de “Por Elise”, Grace comenta justamente seu estranhamento com as convenções teatrais não-problematizadas: “‘E essas pessoas assentadas, olhando? Por que ninguém grita? Por que ficam em silêncio? Que formalidade barata! (…) E essas palmas no final, pra quê? Não é pra bater palma pra ninguém, há que se haver uma palma interna, pra si! E essas pessoas em cima do tablado fingindo que ninguém olha?’ E o espanto foi tanto que o que me restava era assumir isso tudo, e dizer para as pessoas assentadas que eu sabia de todo aquele fingimento” (2012d, p. 9).
Essa conclusão concretiza-se na obra do Espanca! e contamina a relação intraficcional, embaralhando as figuras dos atores e dos personagens em cenas como a que se segue:
“Façam isso por mim. Por mim! Por mim! Por mim! (agora para os quatro atores) Por mim! Isso também vale para vocês. Não se envolvam tanto! Escutem, vocês podem estar pensando que o que eu estou falando agora, nesse momento, foi memorizado antes também, mas agora, não… nesse momento eu juro que não, agora sou “eu” que estou falando: “eu!”, “eu!”, “eu!”. Por favor, não se envolvam tanto quando forem contar as histórias aqui. Não vale a pena. Olha, existem técnicas. Sim, técnicas para não precisarem sentir as coisas que vamos contar. Técnica é isso. Façam assim…” (PASSÔ, 2012d, pp.16-17).
Outro momento de problematizar a situação de convívio teatral, do modo metafórico que sempre foi caro a Grace como dramaturga, é a “cerimônia das palmas”, que aparece na fala do Funcionário (Paulo Azevedo/ Sérgio Penna): “Essa é uma cerimônia do sul de um lugar que agora eu não estou me lembrando, mas eu tenho muita curiosidade quando eu ouço falar. As pessoas se reúnem e durante algum tempo elas começam a fazer assim. Ele bate uma mão na outra repetidamente, como se fossem palmas. Permanece assim por um bom tempo. (…) Dizem que desperta a força particular que cada um tem. Isso é feito há anos e anos…”. (2012d, p. 33).
Nesse trecho, a alusão ao teatro é clara, até menos textualmente do que performativamente, quando o espectador vê a ação das palmas, a mesma que lhe cabe, reproduzida e ressignificada em cena. O dentro aponta para o fora, para o acontecimento teatral. Metáfora semelhante à do sonambulismo de Joaquim – o personagem de “Amores Surdos” –, como a indagar silenciosamente se quem dorme são os de dentro ou os de fora da ficção, jogando com a condição do espectador como aquele que contempla passivamente embriagado pela ilusão.
O Espanca assim reforça uma vertente teatral contemporânea que tem como uma de suas marcas a evidenciação da presença sem excluir a fábula e seu potencial de ilusão. A herança da performance aparece contaminando o espaço da teatralidade, mas esta permanece dominante. Traços do que se denominou o teatro performativo. A presença, nesse contexto, emerge à consciência dos artistas e do público como uma valorização da relação extraficcional, isto é, como uma conscientização a respeito da copresença entre ator e espectador, que mobiliza mente e corpos (ou a mente corporificada) de ambos.
Esse teatro que valoriza o convívio surge da disposição por parte dos artistas de rever os fundamentos da linguagem teatral para nela encontrar o que é singular desta arte num mundo transteatralizado. Um teatro que reflete sobre si mesmo como linguagem tende a colocar em evidência essa dimensão e a estabelecer um jogo de ambiguidade entre presença e ausência, entre presença e sentido. Essa é, ainda, uma perspectiva que coloca em evidência, sobretudo, o espectador, pois considera sua presença no mesmo espaço-tempo, assim como toma consciência do pacto que se instaura durante a encenação. Traz essa relação fundadora do teatro – entre ator e espectador – à superfície visível da dramaturgia, sem que, para isso, seja necessária a participação, no sentido de dar a palavra ao espectador ou levá-lo ao palco, mas por meio de modos diversos de reconhecimento da situação teatral, interpelação e endereçamento do texto e dos gestos.
Ainda no prefácio a “Por Elise”, Grace se define como uma jovem dramaturga que precisava que toda a tradição do teatro fosse “honesta”. Fala ainda do desejo de concretizar o ator e o encontro. Compreende, portanto, teatro como acontecimento (com a força da redundância) que só acontece na relação com o espectador. Só o olhar deste outro, só a alteridade, o faz vivo. Eis a honestidade.
Um traço distintivo do pós-moderno em relação ao projeto moderno é o superar dos gestos de ruptura para conquistar formas complexas que conciliam contradições, como o velho e novo. A poética do Espanca! caminha nessa direção. Constitui uma fábula contemporânea, cindida pela corporeidade que irrompe em momentos de “respiro” (o karatê e o tai chi chuan de “Por Elise”, o sapateado de “Amores Surdos”), pela performatividade, pela quebra da quarta parede e pela evidenciação da relação entre atores e espectadores no acontecimento teatral.
“Congresso Internacional do Medo”, com a saída de Samira Ávila e Paulo Azevedo, marca um primeiro deslocamento na trajetória do grupo, que se abre a outros parceiros colaboradores e a um estranhamento oposto à sensação de familiaridade que os personagens das duas primeiras peças causavam. Eis uma mudança brusca em relação ao conceito afetivo que era apregoado em alto e bom som em “Por Elise”, desde o início (“Gente sente tudo, se envolve com tudo”) até o fim (“Cuidado com o que toca. Com a capacidade que gente tem de se envolver com as coisas”), e perpassava “Amores Surdos” na ideia da família como o pó que se acumula nos cantos, aquilo com o qual se deve viver.
Os congressistas falantes de línguas estranhas e portadores de culturas desconhecidas não operam na zona de identificação imediata assim como o faziam uma família ou vizinhos; o olhar do espectador sobre eles permanece mais distanciado e crítico, como quem observa sem envolver-se a priori. O estranhamento se intensifica pela dissociação entre fala e movimento corporal, na medida em que congressistas e tradutora não se movem de suas cadeiras (a dela, para não haver dúvida da metáfora da imobilidade daqueles incumbidos do pensamento e da linguagem, uma cadeira de rodas), ao mesmo tempo em que dois bailarinos silenciosamente desenham seus corpos no espaço ao redor.
Além disso, a situação ficcional do congresso pressupõe a plateia dentro da dramaturgia. Embora a participação direta seja reduzida a algumas perguntas e respostas – “qual é o contrário da vida?” (PASSÔ, 2012b, p. 27) –, a cena é completamente frontal, endereçada para o público, assim como o são as falas dos congressistas e da tradutora, configurando uma relação na qual ao conjunto de espectadores é atribuído um papel ficcional também, o de plateia do congresso, mesmo que, conforme já dito, este papel seja como uma ficção leve, que em si não implica alterações substanciais na performance dos espectadores.
Contudo, a experiência desta espectadora que cá escreve é de uma mudança sensível do espetáculo da primeira vez que o viu, no Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto de 2008, para a segunda vez, no Teatro Oi Futuro, em 2014, especialmente por aquela apresentação fechar-se ainda muito no eixo intraficcional, enquanto a mais recente abria-se para uma relação de troca mais intensa com a plateia, cujo lugar de fruição deixa então de ser distanciado para tornar-se o do reconhecimento do convívio, potencializando as afetações físicas e emocionais do espectador.
Em “Marcha para Zenturo”, o encontro do Espanca! com o grupo XIX de Teatro, o estranhamento se intensifica por obra do deslocamento temporal que desfaz a sincronia dos diálogos e da marcação dos movimentos deixando as vozes e os corpos desencontrados no espaço. O artificialismo das atuações e da direção da cena futurista é temporariamente interrompido pela apresentação de uma peça, um Tchekhov, que coloca os demais personagens na posição de espectadores. O que se tem até aqui é o espetáculo do anticonvívio. O estar no mesmo lugar mas não ao mesmo tempo, estar como quem não está. É somente quando o personagem Marco rompe a estranha dinâmica que rege a cena, ao tocar Lori e reencaixar os tempos, que algo de real e significativo acontece: algo de experiência. Ele diz, irônico, entre acusações dos amigos que não o compreendem: “pelo menos estamos vivendo alguma coisa juntos” (2012c, p. 83) e logo desmente: “é tudo mentira, nós não vivemos nada juntos” (2012c, p. 84).
Para os outros personagens, Marco é o doente, assim como o Joaquim de “Amores Surdos” era o sonâmbulo — são esses seres desviantes os únicos capazes de ouvir e enxergar em meio à insensibilidade instaurada ou, por outra perspectiva, em meio à ilusão estabelecida. Marco, como Joaquim, rompe a quarta parede e reconhece a presença da plateia, assim como reconhece o instante, reconecta-se com o agora e o aqui do acontecimento teatral, da vida que corre entre o passado e o futuro (zenturo). Ele entrega uma pedra de gelo ao espectador, trazendo o universo da plateia para dentro do espaço cênico, e promovendo uma experiência sensorial da metáfora sobre a mutação da matéria sob efeito do tempo. Esse gesto extraficcional ressignifica tudo o que se viu antes no espetáculo, abre sentidos para o que parecia apenas artifício.
A implicação direta do espectador nos afetos e sentidos produzidos faz-se, como provocação, por uma fala dirigida ao conjunto da plateia: “Todos nós estamos aqui. Ainda que sentados. Ainda que de pernas cruzadas. Nós estamos caminhando”. Cabe observar que esta fala está no registro do espetáculo em vídeo, porém, o texto publicado em livro traz outra versão, com o monólogo de Marco abreviado. Nos dois casos, quando entrega a espectadores a pedra de gelo, ele diz: “o mais simples dos presentes: o presente”. A capacidade de perceber o instante, perceber o que acontece, perdida no futuro da ficção como uma crítica ao tempo despresentificado do calendário corrente. Marco, assim, retoma a potência do teatro de redespertar aquilo que o cotidiano adormece.
Em “O Líquido Tátil”, sob a escrita e a direção de Daniel Veronese, o Espanca! retorna a uma fábula de contornos dramáticos mais aparentes, nos moldes de “Amores Surdos”, performada em triangulação direta com o público, para o qual parte das falas se destina, num reconhecimento constante de sua presença — tanto que Nina (Grace) apresenta a si mesma, o marido (Marcelo) e o cunhado (Gustavo) à plateia.
Esta estrutura se abre na confrontação direta com o público sobre a artesania do teatro. “Que real? Isso é real?”, questiona Peter (Marcelo Castro), olhando para os espectadores e claramente referindo-se à situação teatral e ao modo como Michael (Gustavo Bones) conta uma memória. Ele continua: “Não sei se o teu conceito de realismo é utilizado no teatro, enquanto realismo no teatro é muito diferente do realismo no cinema e do realismo na literatura. (…) O mesmo acontece quando uma pessoa se coloca no palco diante de outras pessoas que estão ali. E há autores que fazem disso a sua dramaturgia, a singularidade do fato que nunca poderia acontecer numa sala de cinema”. Na sequência, Michael escapa do espaço cênico e vai até um espectador para perguntar se ele prefere teatro ou cinema, e a discussão prossegue com uma provocação sobre como o cinema seria capaz de criar imagens inesquecíveis e o teatro não.
É curioso que toda essa digressão metalinguística/ metateatral faz-se sem que os atores saiam de seus personagens, são eles quem debatem, são eles quem reconhecem os espectadores. A ficção, portanto, nunca é completamente desfeita. E, embora o texto de “O Líquido Tátil” tenho origem exterior ao grupo, é o espetáculo que problematiza mais abertamente as questões que perpassam as dramaturgias anteriores. Inclusive na discussão sobre a imagem, da qual se depreende em oposição, como singularidade do teatro, a performance de atores vivos, por mais insustentável que seja a afirmação de que o teatro seja incapaz de produzir imagens fortes (Bob Wilson e Felipe Hirsch seriam dois contrapontos fáceis para essa ideia).
De todo modo, mesmo no palco mais precário em termos de plasticidade e tecnologia, reside o convívio de atores e espectadores como potência de uma arte singular estabelecer conexões poéticas. A trama sobre os desejos e vícios humanos, assim, atinge um espectador convocado a pensar também em sua situação no acontecimento teatral. E mais. Em sua posição dentro de uma cultura altamente midiática na qual à pergunta de Michael seja comum a resposta “cinema” como preferência.
Por fim, “Dente de Leão” – o primeiro espetáculo após a saída de Grace Passô, escrito por Assis Benevenuto (ator de “Amores Surdos” e integrante do grupo Quatroloscinco) – mantém de início uma relação mais ambígua com a plateia, na medida em que, na primeira cena, os alunos reconhecem o espaço do teatro, ainda envolto em breu, e suas falas transitam na fronteira entre a ficção e a não-ficção ao pedir, por exemplo: “Atenção, desliguem seus celulares”. Por instantes, parece que estão “no mesmo lugar” onde nós, espectadores, estamos, e falam como se nos vissem. Do fundo da plateia, Chico (Raysner de Paula) grita: “Você tem que imaginar que tem uma velha surda aqui na última fileira”. A esta altura, já percebemos que o espaço onde eles estão é ficcionalizado, embora coincida com o nosso, pois o deles está vazio – é o auditório de uma escola. De todo modo, a sequência espacializa as vozes pela plateia e funda outra consciência do espaço.
A partir daí, a ação se desenvolve dentro de uma fábula cindida entre registros mais ou menos artificiais, que realocam o público na posição de observador mais distanciado do fenômeno teatral e impossibilitam-no de estabelecer identificação com os pais e professores, em razão do tratamento estilizado de suas atuações, privilegiando a perspectiva dos alunos. A parte final, contudo, reequaciona a situação. As engrenagens da representação como estratégia não somente do teatro, mas da vida, são iluminadas. As cenas da Feira de Ciências são realizadas diretamente para os espectadores, que passam a representar a plateia da escola. A performance dos alunos, feita como lição aos professores, culmina no posicionar-se destes para receberem os aplausos da plateia. Novamente nós, espectadores, estamos dentro e fora da ficção ao mesmo tempo. Eis o jogo.
Um jogo, em certa medida, com o real. É, afinal, para o real do acontecimento teatral, das nossas copresenças no tempo e no espaço, que esses momentos apontam. O jogo, então, é o do imergir na ficção, mas respirar fora dela. Ser capaz de fazer a travessia. Sempre numa relação frontal com o espectador, com o reconhecimento deste, com o convite à fábula, com a consciência do teatro e de sua potência, numa troca de afetos não ingênuos.
Sem tomar a centralidade da experiência teatral, a questão do convívio está, portanto, presente em todos os espetáculos desta primeira década de existência do Espanca!; é uma das marcas constitutivas da poética do grupo e afeta o modo de apreensão da fábula – esta, sim, central à obra. A fruição do espectador não é participativa, porém tampouco assemelha-se à contemplação de um quadro. O quadro, no caso, literalmente olha de volta para o espectador, reconhece sua presença e sua humanidade, por uma relação de troca fundada na concepção de teatro como algo que acontece não diante da plateia mas com a plateia. Este lugar onde o espectador não desaparece, ao contrário, é sempre lembrado de seu estar presente. A fábula contemporânea desenhada pelo Espanca! é fragmentada mas nunca em ruínas. Contar uma história ainda é possível, ainda é preciso. Ainda organiza a experiência humana e permite saltos metafóricos para dar sentidos inesperados à vida, entre seres vivos que se reconhecem mutuamente.
Ps. Este texto foi escrito dentro dos limites que o teatro, como arte efêmera, permite pela memória dos espetáculos presenciados, a leitura das primeiros quatro peças publicadas em 2012 pela editora Cobogó e a revisita dos registros em vídeo: “Por Elise”, visto duas vezes, em 2008 e 2014, e revisto em vídeo. “Amores Surdos”, visto quatro vezes, de 2006 a 2014, e revisto em vídeo. “Congresso Internacional do Medo”, visto duas vezes, em 2008 e 2014. “Marcha para Zenturo”, visto uma vez, em 2011, e revisto em vídeo. “O Líquido Tátil”, visto duas vezes, em 2012 e 2013, e revisto em vídeo. “Dente de Leão”, visto duas vezes, em 2014, e parcialmente revisto em vídeo.
REFERÊNCIAS:
PASSÔ, Grace. Amores Surdos. Rio de Janeiro: Cobogó, 2012a.
______. Congresso Internacional do Medo. Rio de Janeiro: Cobogó, 2012b.
______. Marcha para Zenturo. Rio de Janeiro: Cobogó, 2012c.
______. Por Elise. Rio de Janeiro: Cobogó, 2012d.