O Líquido Tátil
trilha sonora:: texto e direção de Daniel Veronese
:: com Grace Passô, Gustavo Bones e Marcelo Castro
Um núcleo familiar dialoga sobre as artes, o ato teatral e alguns desejos violentos que perseguem o homem. O espetáculo é fruto de uma parceria com o diretor argentino Daniel Veronese. Grande referência teórica e estética para os integrantes do grupo desde sua formação, Veronese é considerado um dos maiores nomes do teatro mundial. O processo começou com o evento ‘Encontro Tátil’ e a criação do espetáculo se deu em seu estúdio, em Buenos Aires, quando o grupo se mudou temporariamente para a capital argentina. Conversando sobre princípios de criação, Veronese aventou qual teria sido sua possível contribuição para o teatro: radicalidade e síntese. Nesta comédia, escrita em 1997, taras, vícios e violências permeiam uma família estranhamente realista.
O Líquido Tátil estreou dia 01 de setembro de 2012 no teatro Espanca!, em Belo Horizonte, Minas Gerais. A quarta peça da companhia já foi vista por aproximadamente 7.500 espectadores em 106 apresentações em 16 cidades de 9 estados brasileiros. Cumpriu temporadas em Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo. Foi ainda indicada ao prêmio Questão de Crítica-RJ na categoria elenco.
Diretor e dramaturgo argentino, Daniel Veronese iniciou sua carreira como ator e marionetista. É um dos fundadores do grupo El Periférico de Objetos, companhia com uma pesquisa fundamentada na integração entre atores e objetos. Baseando seu trabalho na atuação e na busca pela síntese dos efeitos da cena, Veronese é hoje uma referência da produção contemporânea nos circuitos teatrais do mundo, sendo autor de uma ampla obra publicada e dirigida.
Entre 08 e 11 de dezembro de 2011, o espanca! realizou o “Encontro Tátil – um Mergulho na Obra de Daniel Veronese”. Pesquisadores e artistas convidados participaram do seminário aberto ao público, que também contou com a presença do artista argentino, diretor de O Líquido Tátil. A programação, mediada pela professora e atriz Bya Braga, incluiu o debate PRÁTICAS DO REALISMO CONTEMPORÂNEO [diálogos entre espanca!, grupo Quatroloscinco, Anderson Aníbal (Cia Clara de Teatro), Eduardo Moreira (Grupo Galpão) e Juarez Guimarães Dias (Cia. Pierrot Lunar)]; abertura do processo de O LÍQUIDO TÁTIL; além de leituras de outros textos de Veronese: A TERRÍVEL OPRESSÃO DOS GESTOS MAGNÂNIMOS, feita pelo grupo Quatroloscinco; A NOITE DEVORA SEUS FILHOS (criação de Alexandre de Sena, Gláucia Vandeveld, Gustavo Bones, Jésus Lataliza, Mariana Maioline e Renata Cabral); e LUÍSA (por Bya Braga). O Encontro Tátil foi realizado em parceria com a Agentz Produções, no projeto de ocupação do Galpão 3 da Funarte/MG.
Sem chão sob os pés, de Alvaro Machado
Fantasmagorias da realidade, de Dinah Cesar
Da seriedade à irreverência da arte, de Marco Vasques e Rubens da Cunha
Leve Irina Nikoláievna embora daqui…, de Lucas Mayor
Sobre furos, vazamentos e substâncias viscosas, de Victor Guimarães
Alvaro Machado:
SEM CHÃO SOB OS PÉS
publicado na revista Carta Capital em 14/04/2013
Mais a propósito a cada dia, o ditado “de perto ninguém é normal” tem ilustração à altura no novo espetáculo do Grupo Espanca, de Belo Horizonte. Não importa se a frase é original de Caetano Veloso, ou dele a partir de Tostoi (com relação às famílias) ou de Nelson Rodrigues (a comentar honestidade) ou amálgama de três pensamentos. Em O Líquido Tátil, uma visita familiar torna-se passagem para outro nível de realidade, a deslocar o chão sob os pés do espectador. Alteração em grande medida provocada pelo tom que a atriz e diretora Grace Passô, musa de várias companhias vanguardistas, imprime aos diálogos do argentino Daniel Veronese, no que é seguida por Gustavo Bones e Marcelo Castro.
O tapete da normalidade arrancado fundamenta-se nos absurdos sutilmente plantados por Tchekhov em comédias como O Urso e Os Males do Tabaco, bem como na sensibilidade alternativa proposta pelo cronópio maior, Júlio Cortázar. Com 40 minutos o esquete engendra prova de humor a honrar a inteligência das melhores plateias.
Dinah Cesar:
FANTASMAGORIAS DA REALIDADE
publicado na revista eletrônica Questão de Crítica em 30/01/2013
A cena é simples, na verdade, tudo dá a aparência de um cenário artificial. Uma sala de estar com duas paredes, uma ao fundo e outra na lateral direita. O cenário não tem um acabamento tradicional realista, é feito de compensado pintado, sem pretensões ilusionistas, propositadamente sem nenhum tratamento característico de uma cenografia figurativa. Na parede lateral vê-se um pequeno corredor que sugere um cômodo contíguo. O lado esquerdo é vazado para o escuro do fundo do espaço. Um carpete verde e um sofá marrom de dois lugares. A primeira impressão deste conjunto, juntamente com os atores no espaço, é a de que a narrativa humana se estrutura por enredos incompletos. Tudo sugere um desgaste pelo tempo. O que se observa é um desejo de realismo (de um regime estético mimético) insuflado pelo regime da realidade que se mostra como algo que precisa ser construído. A desejada imaterialidade humana de suas histórias está instalada numa região virtual que não está ali visível para o público, que se insinua pela qualidade de um cenário meio inacabado.
A cenografia se alia com a fábula de dois irmãos e a mulher de um deles que discutem sobre arte em uma espécie de rivalidade quase superficial, na medida em que tentam convencer um ao outro sobre as virtudes e diferenças entre o cinema e o teatro. A materialidade também contém esta porção de convencimento e superficialidade. Tudo pode ser uma questão de discurso bem articulado. A mulher tem uma fixação por cachorros e, ao começar a falar, se detém em uma análise surreal do vocábulo cão. O texto de Daniel Veronese fala de amor, de relacionamentos afetivos, das possibilidades do trabalho de arte, da triangulação dos desejos de personagens que não estão completos. Eles se dirigem ao público todo o tempo na espera de ganhar identificação com suas questões. A mulher está insatisfeita com o casamento, seu marido é um homem frágil e a chegada de seu irmão é uma excelente oportunidade para os dois primeiros tentarem defender suas posições.
A inspiração de Veronese são os artistas russos: o dramaturgo Anton Tchekhov, o cineasta Andrei Tarkovski e o teatro de cabaré com seus prestidigitadores, sua junção de música, declamação, atuação e circo em um mesmo espetáculo. Esta mistura aparece no discurso de O líquido tátil, na composição dos personagens que são como subjetividades em fragmentos, nos detalhes pregnantes dos figurinos como, por exemplo, a estampa animal da mulher, o cabelo e os óculos do irmão e o modelo-funcionário-público-pobre do marido. O resultado parece não querer apagar os elementos, mas insistir no fato de que a vida e a arte são territórios híbridos. Tudo isto com graça e humor que remetem sempre para tensões sensuais nos corpos dos atores.A encenação, como uma espécie de interstício das artes, tensiona nela mesma os procedimentos artísticos. Uma das qualidades que aparecem é a revelação sutil da ideia de dispositivo no cinema sugerido para o teatro. Como se sabe, diante da imagem cinematográfica, ocorre a conhecida “impressão de realidade”, e isto se dá porque ela reproduz os códigos que definem a “objetividade visual”, segundo a cultura dominante em nossa sociedade. A realidade fotográfica é “objetiva”, e esta foi sua grande revolução, justamente porque ela é resultado de um aparelho construído que confirma a porção de ideologia que forma nossa “objetividade visual”. No cinema, esta objetividade acontece pela junção entre o aparelho projetor de imagens, a sala escura e os espectadores, o que conhecemos como dispositivo.
Na cena de Veronese, o aparecimento de uma espécie de dispositivo vai sendo construído por meio de diferentes elementos que são percebidos em meio a um regime que não é absolutamente evidente. O primeiro elemento é o cenário ressaltado como uma artificialidade, tal como o aspecto que as máquinas têm para nós. Não que o cenário seja deliberadamente uma máquina, mas possibilita uma sensação que surge no confronto com um objeto que se origina neste meio de produção. Aliada a esta sensação, a personagem (que é uma atriz chamada Nina Hagëken) narra um momento vivido por ela em um show num cabaré russo. O episódio tem as características de uma montagem semelhante a dos sonhos. Então, a sensação da máquina, do meio de produção, se confunde com uma espécie de ilusionismo, na medida em que o sonhador, por mais estranho que o sonho seja, é acometido por uma reação imersiva. No desdobramento da cena, um dos embates mais importantes dos personagens se dá entre as distinções e os valores do cinema e do teatro, o que vai construindo para o público um estado de percepção entre as potencialidades destas duas linguagens em, ora afirmarem objetivamente a realidade, ora afirmarem seu caráter de falso.
A discussão transita entre o moderno e o contemporâneo, entre as utopias e o estranhamento que vaza de nossos afetos na atualidade. Nesta mesma direção estão as pequenas mostragens da vida dos personagens como, por exemplo, suas relações com os cachorros ou o modo cômico e inusitado como a sexualidade aparece. O dispositivo ainda é revelado pelas alusões aos atores de cinema. Em meio aos elementos da fantasmagoria cinematográfica, o irmão começa narrar um fato do passado no melhor estilo teatral. Os dois regimes de construção de realidade se encontram: o do cinema e o do teatro.
Tudo isto acontece com a história de três personagens. Os atores do Espanca! se mostram como força de um presente que não anula sua posição de interstício. Personagens assombrados pelas imagens das máquinas que constroem os pensamentos. Grace Passô como Nina Hagëken é como a encarnação de um disforme encantador, uma espécie de beleza que está no início e no final dos nossos desejos. Marcelo Castro mostra a situação limite do homem que, semelhante ao animal acuado, ganha força de reação, e Gustavo Bones é como o líquido do título – realça a função tátil desse elemento por sua capacidade maleável de nos tocar.
A porção maquínica de nossas fantasias de realidade é discutida pela revelação dos clichês subjetivos que o cinema nos impõe, num teatro que os leva ao limite. O Espanca! parece saber disso e se coloca na situação de risco, no território deslizante entre os dois.
Marco Vasques e Rubens da Cunha:
O LÍQUIDO TÁTIL: DA SERIEDADE À IRREVERÊNCIA DA ARTE
publicado na revista Osíris em 22/10/2014
Daniel Veronese é um dos principais dramaturgos latino-americanos da atualidade. A obra vasta do argentino tem em O líquido tátil um de seus melhores exemplares. Na peça, três personagens: uma atriz, seu marido e o irmão do marido entram num jogo de acusações, imposições, artimanhas, que servem para Veronese discutir, não apenas aspectos psicológicos e sexuais de seus personagens, mas o próprio teatro, a condição da arte e do artista.
Assim, a técnica da metalinguagem, do teatro narrativo, da quebra da quarta parede, da aproximação com a linguagem cinematográfica, do humor que toca o escracho e o absurdo servem de caldo para que Veronese teça suas críticas e revele seu olhar severo sobre o atual estado da arte e o atual estado da vida. O líquido tátil é uma peça fortemente calcada no texto, algo que a montagem do Grupo Teatral Espanca defende caninamente para fazer referência a uma das alegorias da peça. Contudo, a direção soube dosar o equilíbrio entre gesto e palavra, ação e vocalidade.
A direção do espetáculo, que ficou por conta do próprio Daniel Veronese, recebeu o grupo em Buenos Aires para uma residência. O cenário é simples: uma sala, um sofá, muitas carteiras de cigarro e palavras, palavras, palavras ditas em todos os tons e sobretons. Transitando entre o silêncio e a histeria, os três atores se revelam adonados de seus personagens, sobretudo Grace Passó, uma dessas atrizes que domina o ofício com maestria do início ao fim da sua estada em cena. Ela é um acontecimento verbo-voco-visual. Um petardo de força e humor que arrebata a plateia e que se impõe diante do espectador como que a dizer: “neste território, neste encontro, eu imponho as condições”. Os atores Gustavo Bones e Marcelo Castro acompanham essa força, incorporando dois irmãos que também transitam entre a neurose, a psicopatia e o recalque. Veronese mantém algumas características do chamado “teatrão”: diálogos rápidos, o exagero gestual, marcação e partituras simples e naturais. No entanto, quando precisa sair desse eixo da naturalidade e cair no escracho, no caricato não tem pudor nenhum em fazê-lo. Sobretudo na parte final, em que se tenta resolver o conflito familiar e se chama o cinema (e toda a acidez que é colocar cinema no teatro) para a coda do espetáculo.
O Grupo Teatral Espanca tem dez anos de trajetória, uma base de linguagem muito sólida e não tem medo de inovar, de transgredir suas próprias certezas. Trata-se de um grupo capaz de assimilar uma peça como O líquido tátil, dirigida pelo próprio autor, e que acrescenta a ela sua força, seu jeito de fazer teatro, suas marcas poéticas. O trocadilho é inevitável: o Grupo Espanca nos espanca com uma peça atordoante; espanca as palavras até chegar à vocalidade, isto é, ao corpo e à presentificação da voz.
Para além das discussões do eixo familiar, a peça faz uma discussão sobre a linguagem artística e impõe perguntas de difíceis respostas, tais como: qual é a função da arte? O que é arte? Sedimentamos ou não conceitos sobre a linguagem que se repetem e se tornam nulos? O que nos toca no mundo da arte? Quem, afinal, define o que é e o que não é um objeto estético validado pela história cultural? O cinema, a televisão, o trabalho do ator shakespeareano, o expressionismo, as vanguardas todas, enfim, a trama simbólica vai acomodando estes personagens-artistas consumidos pelo insucesso e condenados a ruminar o desejo do estrelato. Estamos diante de três atores interpretando três artistas que, de algum modo, se perderam nas entranhas das próprias linguagens de seus ofícios. Estamos diante de uma metáfora ácida e bem-humorada do que poderíamos nominar de sistema de poder das artes e de sistema de poder sobre a vida.
Lucas Mayor:
LEVE IRINA NIKOLÁIEVNA EMBORA DAQUI. O CASO É QUE KONSTANTIN GAVRILOVITCH METEU UM TIRO NA CABEÇA…
publicado no blog mayorlucas em abril de 2013
Toda vez que penso em Tchekhov, lembro da frase agônica de Van Gogh nos braços do seu irmão Theo, “A tristeza durará para sempre”. Maurice Pialat faz uso da mesma sentença naquele que viria a ser seu filme-testamento, À nos amours. A cena acontece na mesa de jantar, todos reunidos, o pai (Pialat) reaparece e diz como as coisas são, como é a vida, o peso real da existência. A tristeza durará sempre surge nesse monólogo do pai à mesa. Ele diz que não importa muito se Van Gogh realmente disse isso ou não, mas que ele poderia ter dito. E acrescenta: a tristeza não é de Van Gogh, mas dos outros, nos outros, nos seus, em mim. Algo assim.
A tristeza está no mundo. A tristeza está em nós.
Ainda no primeiro ato de A gaivota, Nina diz a Trigorin: “É um mundo maravilhoso! Se o senhor soubesse como o invejo! A sorte não é igual para todos. Há os que arrastam sua vida monótona e apagada. Todos se assemelham entre si e todos são infelizes. A outros, como por exemplo ao senhor – um entre milhões – coube uma vida interessante, significativa e risonha… O senhor é feliz…”
Todos são infelizes. E mais: O senhor é feliz. As peças de Tchekhov, num reducionismo grosseiro da minha parte, giram em torno do par antitético tristeza/felicidade. As personagens de Tchekhov tendem a acreditar que perderam fatias consideráveis de suas vidas em coisas banais. Em síntese, vidas banais, insignificantes, tediosas e ridiculamente pequenas diante das expectativas ambiciosas que nutriam em relação ao futuro.
No quarto ato de Tio Vânia, o tio diz o seguinte: “Dê-me alguma coisa! Oh, meu Deus… Estou com quarenta e sete anos; se, digamos, chegar até os sessenta, ainda me restam treze. É muito! De que modo vou viver esses treze anos? O que vou fazer, com que vou me ocupar? Oh, sabe… (aperta a mão de Astrov convulsivamente), sabe, se pudesse viver o que me resta ainda da vida de um modo novo! Despertaria numa manhã clara e tranquila e sentiria que estou COMEÇANDO a viver de novo, que o passado caiu no esquecimento, dissolveu-se como a fumaça. (Chora.) Começar vida nova… Diga-me, como começar… com que começar…”
Astrov diz ao tio que a situação deles (e consequentemente da humanidade) é sem esperança. Não há recomeços possíveis. A vida é essa que está aí. Trate de inventar um sentido pra ela, diria Astrov se estivesse numa peça de Sartre, mas ele está numa peça de Tchekhov, e o que vem a seguir da boca de Astrov é a súmula da obsessão temática de Tchekhov, a qual ele irá repisar particularmente em cada uma de suas obras: “(grita irado) Basta! (Mais moderado.) Os que vêm depois de nós, daqui a cem, duzentos anos, e que nos desprezarão por termos vivido de modo tão tolo e com tanta falta de bom gosto – eles talvez encontrem a maneira de serem felizes, mas nós… A nós resta uma única esperança. A esperança de quando já estivermos descansando em nossos túmulos, receber a visita de espíritos, de espíritos agradáveis, quem sabe.”
As personagens de Tchekhov sobrevivem inexoravelmente represadas (vidas estanque) entre aquilo que são e aquilo que gostariam de ser. O presente é insuportável. O passado foi um desperdício. O futuro é repetição. Dito isso, resta viver. Da maneira que for possível. Do jeito que der. Quem sabe. Talvez.
Uma coisa é certa: não há esperanças. Não para nós.
Daniel Veronese retornou. E, mais uma vez, ladeado por Tchekhov. Escrevi sobre uma de suas montagens há dois anos. À época, tentei manifestar a uma amiga algumas impressões acerca da encenação. Falhei miseravelmente. Usei adjetivos sobremaneira. Fiz digressões. Recorri a analogias pedestres. Todavia, relendo o texto, uma coisa permanece intacta, fincada ao peito. O teatro que me interessa é aquele em que os atores criam. Em que existe liberdade pra se criar. Uma liberdade qualitativa, mediada e estruturada por limites muito claros. Anne Bogart insiste nesse ponto ao dizer que “são as restrições, a precisão, a exatidão, que possibilitam a liberdade”. É desse espectro de liberdade que falo.
É muito fácil notar qual tipo de liberdade foi estabelecida entre os atores e o encenador. A liberdade qualitativa, com limites, restrições e exatidão, ou a outra: sem limites, irrestrita e inexata. A qualidade da experiência recai decisivamente na escolha da liberdade, na escolha do território de liberdade almejado.
“O líquido tátil” é a materialização cênica do encontro entre Daniel Veronese e o Grupo Espanca!. O texto foi escrito em 97 por Veronese. Inicialmente, citei Maurice Pialat. A citação se justifica pelo modo como ambos trabalham o material dramatúrgico. Veronese no teatro; Pialat no cinema. Em “Sob o sol de Satã”, mais do que adaptar o livro de Bernanos para o cinema, Pialat reescreve, suprime e condiciona o roteiro a uma sucessão de momentos. Não é uma releitura ou uma adaptação, mas uma recriação de potências. De modo semelhante, Veronese procede por amputação. Amputa o membro (texto original que serviu de base) quase por completo e recria (tal qual uma prótese) um outro órgão. Do que foi extirpado, fica a essência, fica o gesto inscrito no corpo, a sensação do amputado que sente o membro presente no vazio que agora se faz parte.
A esse procedimento dramatúrgico praticado por Veronese, a amputação e o enxerto, encontra-se um outro, a subtração (nesse último caso, refiro-me aos aspectos da encenação). Apontei em Roberto Alvim esse mesmo sistema criativo na composição da cena, na escolha das modulações simbólicas, mas o modo como Alvim subtrai é inversamente oposto ao modo como Veronese suprime. A própria relação entre os símbolos no texto de Veronese faz pensar nessa idéia de substituição, troca, reposição, deslocamento, inversão. Os cachorros são substituídos. O irmão ocupa, momentaneamente, o lugar do outro. A família se reconfigura. Tudo é provisório e instável. Por outro lado, tudo leva a crer que as coisas permanecem irremovíveis.
A luz em “O líquido tátil” não sofre alterações, a não ser por dois momentos centrais. O mobiliário é mínimo. O perímetro ocupado pelos atores é exíguo, divisado claramente por tocos de madeira e um tipo de carpete verde (evidenciando claramente o aparato ficcional). A música é quase inexistente. As três unidades dramáticas são respeitadas quase que em sua totalidade (há fugas, decerto). Toda a concentração, simplicidade e frontalidade, a compactação desses elementos, organizam uma proposta de finalidade cristalina: a hegemonia da atuação (no que lembra muito “Prêt-à-porter”, guardadas suas distâncias e singularidades).
A esse aspecto, em todas as entrevistas que li, Veronese é categórico: “o que me interessa são os atores”. Comprime-se o espaço pra que a atuação seja sempre o centro da cena, da vida. Nada de ruídos ou interferências de outra ordem. Subtraem-se os elementos convencionais dos modos de fazer teatro a fim de que alguma coisa surja. A vida, talvez.
Trepliov, no primeiro ato de “A gaivota”, lembra-nos: “Personagens vivos! A vida precisa ser representada não como é nem como devia ser e, sim, como aparece em nossos sonhos”.
Grace Passô mantém seu campo de presença primoroso. Tudo em Grace parece existir por excessos. Vocal, corporal. Ao mesmo tempo, tudo parece menor, pequeno, do tamanho que for preciso. Desnecessário repetir o que todos dizem, mas seu domínio interpretativo parece ainda mais consistente, como se isso fosse possível. Gustavo Bones opta por uma composição mais tipificada, e se num primeiro momento isso soa ligeiramente estranho, no instante seguinte soa o mais natural possível, tamanha a autenticidade que Bones imprime ao que poderia se tornar um tipinho patético e sem cor. Marcelo Castro, por sua vez, de um cerebralismo cômico brilhante, de traços sem impostura e rigidez intelectual apaixonante, nos arrebata desmesuradamente. Até aqui, de tudo que pude ver de Marcelo Castro, essa personagem, Peter Expósito, figura sendo sua composição mais bonita.
As personagens de “O líquido tátil” discutem sobre representação, arte e afins. O cinema e o teatro aparecem aqui pra colocar em crise o próprio ato de representar, o conceito de realismo, a noção de verdade. A reboque de toda essa parafernália teorizante, a família. Dois irmãos e a mulher de um deles. O irmão vem visitar o casal. A coisa se desenrola a partir daí. Convencionou-se chamar as famílias aparentemente fora das normas (quais normas?) de disfuncionais. Sob essa ótica psi, essa seria uma dessas famílias. Prefiro pensar que essa é uma família normal, e que toda história familiar é estranhamente disfuncional e bizarra se observada microscopicamente, tal como Veronese nos situa na cena.
Veronese amputa “A gaivota” e o enxerto, a prótese, a membrana é esse pedaço de vida, esse corpo que sofre de existência e que o Espanca! traz à luz sem perder de vista os princípios éticos e estéticos que norteiam o grupo desde a primeira encenação. Ao lado da prosa poética (as pernas) de “Por Elise”, à esquerda do afeto agudo (coração) de “Amores surdos”, “O líquido tátil” é aquilo que reveste o esqueleto, os membros, os órgãos. Deve ser essa a epiderme da vida.
Victor Guimarães:
SOBRE FUROS, VAZAMENTOS E SUBSTÂNCIAS VISCOSAS
publicado no Dossiê Espanca! do site Horizonte da Cena em setembro de 2015
Isso era o que me irritava, Bruno, que se sentissem seguros. Seguros de quê? Diga lá, quando eu, um pobre diabo com mais pestes que o demônio debaixo da pele, tinha bastante consciência para sentir que era tudo feito de gelatina, que tudo ao redor tremia, que era só prestar um pouco de atenção, calar um pouco, para descobrir os furos… Na porta, na cama: furos. Na mão, no jornal, no tempo, no ar: tudo cheio de furos, tudo esponja, tudo como uma peneira peneirando a si mesma… [Julio Cortázar, El Perseguidor]
Para quem acompanhou a trajetória anterior do Espanca! – pelo menos até a saída de Grace Passô –, o encontro com Daniel Veronese em “O Líquido Tátil” não causa espanto. Embora seja a primeira ocasião em que tanto o texto quanto a direção de um espetáculo são assinados por alguém externo ao grupo, as afinidades temáticas, de tom e de estilo são tamanhas que, por momentos, a peça de Veronese (encenada pela primeira vez em 1997) parece um desenvolvimento natural das preocupações do Espanca!, ou uma sorte de elo perdido entre “Por Elise” e “Amores Surdos”. O gosto pela exploração do cotidiano familiar, pela espessura dos encontros íntimos, pela violência que se esconde sob a capa da normalidade; as contaminações frequentes entre a melancolia e o humor e as imprevisíveis mudanças de tonalidade; o minimalismo da encenação combinado à complexidade das invenções dramatúrgicas… está tudo lá, nas interações entre esses três atores (talvez em suas melhores performances até aqui) que ocupam um cenário despojado e fazem dele um território dramático vibrante.
Além da admiração confessa do Espanca! por Veronese, essa proximidade reenvia a uma frequência literária compartilhada por ambos os dramaturgos: o Cortázar das narrativas urbanas, como “Rayuela” e “El Perseguidor”. Embora Tchekhov seja a referência maior de Veronese – boa parte de suas peças se dedica a uma reimaginação de textos clássicos do autor russo, como em “Los hijos se han dormido” (2011), a partir de “A Gaivota” –, tanto no dramaturgo e diretor argentino como em Grace Passô há ecos notáveis de Cortázar: há esses personagens inteiramente mergulhados no próprio desespero, como que suspensos a um palmo do solo da realidade e sempre prestes a cair; esses diálogos inflamados que começam bem terrenos e logo se alçam à metafísica, para descer em seguida ao rés do cotidiano; e, principalmente, esses mundos ficcionais sempre ameaçados pela dissolução, como se uma perturbação interna – a loucura, o apego, o tédio, a droga, o medo – os fosse corroendo por dentro, até que uma intervenção abrupta – uma frase sem pontuação, um som imprevisto, um corpo estranho que cai – finalmente interrompa de um golpe o acontecer do mundo literário ou cênico.
Essa topografia ficcional sorrateiramente acidentada – esse mundo cheio de frestas e buracos que, embora renitentemente ocultados pela retórica dos personagens, são constantemente ameaçados pelo devir de um vazamento – é a marca indelével do teatro do Espanca!. A certa altura de “O Líquido Tátil”, Michael (Gustavo Bones), encantado com o poder do cinema de cristalizar imagens, pede a Peter (Marcelo Castro) que cite uma (“não três, não duas, uma”) imagem de teatro que lhe tenha ficado na memória. O personagem silencia, mas eu poderia facilmente citar três momentos singulares, três prodígios formais, três imagens insubstituíveis que o Espanca! me deu ao longo desses anos e que permanecerão vivas em minha memória para sempre (ainda que eu só tenha visto cada um dos espetáculos uma única vez): o despencar violento dos abacates em “Por Elise”; a lama que entra pela casa de “Amores Surdos”; o sangue na camisa de Peter ao final de “O Líquido Tátil”. Um princípio parece governar a intensidade dessas imagens: em todas elas, há algo de simultaneamente interno e externo, ao mesmo tempo pacientemente preparado e imprevisível, que se precipita abruptamente sobre a cena. O furo sempre esteve lá, e era possível intuí-lo, mas eis que então uma materialidade viscosa (abacate, lama, sangue) enfim vaza, toma de assalto o espectador e ressignifica todo o resto.
Em “O Líquido Tátil”, as comparações entre teatro e cinema ocupam boa parte dos diálogos – e muitas vezes soam pueris, beirando o enfadonho, em consonância com o tédio irritante que emana de um personagem como Peter (e da atuação – mais uma vez – brilhante de Marcelo Castro). No entanto, tudo o que as dissociações operadas pelos discursos de Michael e Peter definem como cisão irremediável é constantemente contrariado pela encenação de Veronese e do Espanca!. A atuação de Gustavo Bones – numa notável partitura corporal que reenvia simultaneamente à pantomima e ao burlesco de Chaplin a Jim Carrey – e o momento em que uma projeção de imagens-movimento invade a cena minimalista já seriam o bastante para comprovar a potência das contaminações entre as duas artes, mas há um princípio formal ainda mais pungente em jogo nesse teatro. O que é essa perturbação intensa e constante da cena por um elemento invisível (os abacates de Por Elise, o hipopótamo de Amores Surdos, o cachorro Titan Tinanovich em “O Líquido Tátil”) senão a potência da reserva temporal do fora-de-campo (ou do extracampo, para usar os termos de Deleuze)?
O jogo com a restrição espacial do quadro cinematográfico provoca, de Dreyer a Tsai Ming-Liang, de Bresson ao cinema de horror, a precipitação sobre o visível de uma intensidade outra, que não vemos, mas que incide sobre o que vemos. Quando acionada, a zona de vizinhança entre campo e fora-de-campo no cinema guarda um denso compasso de espera, prestes a sofrer a intervenção de um elemento externo que se precipita sobre a cena e rompe de vez o invólucro já esburacado do plano. Nas encenações do Espanca!, é também disso que se trata: da presença sensível de uma ausência, de um invisível que opera subterraneamente sobre o visível até que algo finalmente transborda e vaza.
Em “O Líquido Tátil”, a presença do cão já se anunciava desde o primeiro monólogo de Nina Hagëken – uma sorte de etimologia selvagem da palavra –, continuava nas memórias da montagem de “A Dama do Cachorrinho”, tornava-se lúgubre nos relatos sobre o “suicídio” dos antigos cachorros da casa. Impregnava os objetos – o cãozinho de pelúcia dado por Michael a Nina, que ela mete no meio das pernas e que permanece lá durante quase todo o espetáculo –, contaminava as atuações – a volúpia zoófila de Nina encarnada na sensualidade animalesca e na extraordinária voz de Grace, nunca antes tão gutural – e atingia a cenografia: o espaço localizado em um dos lados do palco, que sugere um cômodo contíguo onde está Titan, opera justamente como essa zona de vizinhança entre campo e fora-de-campo, essa espera densa contaminada pelo invisível que se assenta na restrição espacial.
Mas é apenas quando a cena finalmente explode nos ruídos, no jogo de luzes e na entrada abrupta de Peter no palco – vindo do tal cômodo, com a camisa ensopada de sangue –, que o vazamento acontece e brilha na capacidade de fazer todo o resto ganhar um sentido novo. Durante toda a peça, o espectador intuía a existência e sentia a força dessa ausência, mas é só quando ela reemerge – tornada visível por metonímia – na viscosidade do vermelho que encharca a camisa, que o “tranquilo ambiente burguês” (nas palavras usadas por Peter para descrever os Tchekhov encenados por Nina) se torna irresolutamente perfurado, tremulante, esponjoso. É então que o mundo – palco, plateia, rua – nos aparece como uma peneira deliciosamente incapaz de conter o fluxo da vida.
*Victor Guimarães é doutorando em Comunicação Social pela UFMG. Crítico de cinema na revista Cinética desde 2012.
Texto e Direção: Daniel Veronese
Atores: Grace Passô (Nina Hagëken), Gustavo Bones (Michael Expósito) e Marcelo Castro (Peter Expósito)
Tradução do Texto: Gustavo Bones
Concepção de Cenografia, Luz, Vídeo e Trilha Sonora: Daniel Veronese
Cenotécnico: Nilson dos Santos
Iluminação: Edimar Pinto
Edição de Vídeo: Fábio Gruppi
Figurino: Espanca!
Produção: Aline Vila Real
Realização: Espanca!
Classificação: 14 anos
Duração: 55 minutos
espetáculo realizado com recursos do Petrobras Cultural, patrocinado pela Petrobras através da Lei Federal de Incentivo à Cultura.
O Líquido Tátil estreou dia 01 de setembro de 2012 no teatro espanca!, em Belo Horizonte, Minas Gerais.
2015
Setembro
– Auditório SESI – Festival Artes Vertentes, Tiradentes, MG.
Abril
– Terça Tem Teatro – programação do Itaú Cultural. São Paulo, SP.
Março
– Gamboavista – programação do Galpão Gamboa. Rio de Janeiro, RJ.
2014
Outubro
– Floripa Teatro – Festival de Teatro Isnard Azevedo – Teatro SESC Prainha. Florianópolis, SC.
– Espanca! 10 anos – temporada no CCBB-BH. Belo Horizonte, MG.
Junho
– circulação Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz – C.A.S.A. Nova Lima, MG.
Maio
– circulação Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz – Palco de Arte. Uberlândia, MG.
– circulação Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz – Teatro SESI. Uberaba, MG.
– FIT/BH – Festival Internacional de Teatro Palco e Rua – Sala Juvenal Dias, Belo Horizonte, MG.
– circulação Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz – Teatro Municipal. Dourados, MS.
Abril
– circulação Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz – Clube Feminino. Cuiabá, MT.
Fevereiro
– VAC – VerãoArteContemporânea. Centro Cultural Banco do Brasil. Belo Horizonte, MG.
2013
Novembro
– Encontro SESI de Artes Cênicas. Teatro do SESI. Araxá, MG.
Outubro
– Festival de Teatro do Agreste. Teatro João Lyra Filho. Caruaru, PE.
– Trema Festival. Teatro Barreto Júnior. Recife, PE.
Julho
– Festival de Inverno Ouro Preto e Mariana – Fórum das Artes. Centro de Artes e Convenções. Ouro Preto, MG.
Março, Abril
– Temporada no Espaço Cênico do SESC Pompeia. São Paulo, SP.
Março
– Festival de Teatro de Curitiba – Mostra 2013 – teatro Paiol. Curitiba, PR.
– Teatro Espanca! ABERTO PARA – ocupação do teatro espanca!. Belo Horizonte, MG.
2012
Outubro
– Temporada no Centro Cultural Banco do Brasil – projeto “espanca! Temporada RJ”. Rio de Janeiro, RJ.
Setembro
– Festival Internacional de Artes Cênicas da Bahia – teatro Matim Gonçalves. Salvador, BA.
– Estreia nacional – temporada no teatro espanca!. Belo Horizonte, MG.
PRÊMIOS:
– Indicado ao 2º Prêmio Questão de Crítica (RJ) – categoria Elenco