Congresso Internacional do Medo
trilha sonora:: texto e direção de Grace Passô
:: com Alexandre de Sena, Gláucia Vandeveld, Gustavo Bones, Izabel Stewart, Marcelo Castro, Mariana Maioline, Marise Dinis e Sérgio Penna
Convidados vindos de lugares distantes do mundo integram este encontro internacional na tentativa de conceituar algumas questões que dizem respeito à humanidade. É a partir dessas distâncias que a peça propõe o encontro das similaridades através das diferenças; e busca encontrar o grande tesouro do conhecimento humano, na ciência ou na simples contemplação da natureza. Dentre as conclusões tiradas, está a amedrontadora constatação de que somos efêmeros e provisórios. Inspirado pelo título do poema de Drummond, o espetáculo é uma celebração do encontro e marca a opção do grupo por criar a partir do intercâmbio com parceiros de diferentes campos artísticos. Um Congresso com países, línguas e filósofos inventados mostra aos participantes que o medo é a véspera da coragem.
Congresso Internacional do Medo estreou dia 4 de julho de 2008 no teatro Klauss Vianna, em Belo Horizonte, Minas Gerais. O terceiro espetáculo do grupo já foi visto por aproximadamente 13.000 pessoas nas 58 apresentações em 10 cidades de 6 estados brasileiros. Sua proposta de criação venceu, por unanimidade, a 2ª edição do Projeto de Co-Produção do Núcleo dos Festivais Internacionais de Artes Cênicas do Brasil, o que fez com que integrasse a programação dos principais festivais do país.
Alexandre de Sena
Gláucia Vandeveld
Grace Passô
Gustavo Bones
Isabel Stewart
Nadja Naira
Renato Bolelli
Alexandre de Sena:
Primeira.
Segunda.
Terceira.
Nos reencontramos e reconhecemos aqui. Neste espaço branco como nos meus sonhos de infância. Árvores, lago, céu, pedras e animais, tudo branco. Neste meu sonho, reeditado e revivido, novamente sonho com uma igualdade inalcançável. Sons que surgem de uma canção igualmente perdida dentro de nossos corpos mudos indicam que o caminho pode ser percorrido… Com calma. Mansidão. Nossas tentativas colorem de branco esta lousa alva. O tempo passava e nós aumentávamos. Ultrapassamos duas mãos. Nossa paisagem a cada dia, incrivelmente mais clara. Para tentar entender o que não se pode querer, somente se entende, fui céu, som, tecido, água, formiga, penas, capacete, cordas… Fomos todos. Uma pitada de tudo. Tudo para aumentar o branco de nossa paisagem. Passamos pelo teste do jornal em branco, das idéias em branco e dos bolsos sem cor. Penso. Colorimos todo dia nossa paisagem. Tenho vivido a alegria de recordar meu sonho de moleque. De vivê-lo acordado. Tendo esta oportunidade, decidi hoje colorir o interior do meu sonho. De vermelho sangue. De quando cortamos nossos membros para nos livrar da dor, de quando perdemos nossos membros e ganhamos um brilho no céu, de quando rasgamos o nosso coração e damos lugar a outras meias para aquecer nossos pés, de quando trocamos nossas letras para sermos mais, maiúsculos. como aqueles que me deram a luz, que nos deram a luz e a plataforma. re-sonho. somos membros que atravessam a nata e descobrem o líquido que ela escondia. vermelho. e debaixo desta nata somos todos habitantes daquela pequena ilha, que percorre o mundo e busca, incansavelmente, a igualdade. que tanto sonho, que tanto busco.
Gláucia Vandeveld:
Tradutora.
Como “traduzir em palavras” as sensações vivenciadas no processo de criação do “Congresso”?
Costumamos dizer que a criação, na sala de ensaio, é o momento mais rico e desafiador de todo processo artístico. É onde podemos dar asas a todas as possibilidades, arriscar sem “medo”.
A recepção carinhosa e envolvente de todos, o interesse verdadeiro, me deram a certeza de que ali naquela sala, já se configurava um processo que viria a se transformar numa experiência enriquecedora e coletiva.
Experimentar sensações, criar situações, vivenciar idéias, abraçar propostas, avaliar erros e acertos, definir temas, o que dizer? como dizer? enfim, encontrar nossos caminhos…
Inúmeras dúvidas nos provocavam, trabalho árduo mas intensamente prazeroso, desafios superados graças a generosidade de todos os envolvidos no processo.
Partilhamos angústias, dores passadas e presentes, nos tornando cada vez mais íntimos; brincamos, nos divertimos, rimos muito… muito. E como acontece no “Congresso”, fomos nos tornando cúmplices, co-responsáveis pelo resultado de nosso trabalho.
Ainda estamos em processo, descobrindo coisas novas todos os dias e sempre. Porque é dessa forma que nos sentimos mais vivos.
Obrigada a todos os Espancados,
Gláucia.
PS: Escrevi minhas impressões no plural porque em momento algum desse trabalho me senti só!!!
Grace Passô:
“Congresso Internacional do Medo” foi uma criação muito rica. E eu sempre suspiro quando os Congressistas filosofam entre si, sussurrando, para não acordar a criança:
“Nágoras disse que a vida é uma grande epifania com pausas gigantescas.
Hiócoles disse que o medo é a véspera da coragem.
Fartre escreveu que o segredo da vontade de viver está dentro de um ovo. Bem como nós.
Putdjawa me disse um dia que a felicidade mora no olho de uma onça. E que a gente, pra ser feliz tem que olhar no olho dela”.
Gustavo Bones:
E NÃO HÁ MELHOR RESPOSTA QUE O ESPETÁCULO DA VIDA
Essa história começou muito antes desse processo. Há muito, conversávamos sobre línguas inventadas, sobre diversidade cultural, sobre como subverter a formalidade de um Congresso. Grace me disse um dia que queria fazer uma peça em que ela escreveria apenas o subtexto dos atores. E que eles inventariam o que dizer. Olha que subversão! Encontrei hoje em meu celular, mensagens que trocamos no mês de agosto de 2005:
Bones: E se no Congresso tivesse um espaço pra perguntas do público que os atores respondessem na hora, de improviso?
Passô: Já vi que a cervejinha com a Tia vai durar muito…
Bones: E se o mediador do Encontro tivesse uma crise de pânico na hora da abertura? Medo de estar em público.
Passô: Adorei, putz! Ele inclusive pode fazer xixi nas calças, debaixo da mesa.
Essas idéias iam permeando nossas conversas, nossas viagens, nossas cervejas. E quando precisávamos nos reencontrar, chamamos um tanto de gente para criar conosco esse Encontro. Aos poucos eles chegaram – cada uma num ritmo, numa freqüência. Vinham de lugares distantes, desconhecidos. Trouxeram um pegador, carregaram uma mesa, me ensinaram uma língua, trocaram meu chuveiro, fizeram uma fogueira e nos esquentaram muito. Fomos cultivando um telhado/antiquário com um enorme balão, produtos Avon, uma peruca de índia, uma tartaruga chamada Paúra, um peixe chamado Procópio, vozes da organização, uma esposa traidora, empadinhas de bobó de camarão, um grupo de dança folclórica, uma música da Nação, alguns hinos nacionais e até um mosquitinho. Tanto que quando giramos a plataforma, já éramos uma família.
Enquanto formávamos essa tribo, a morte nos visitou e foi muito difícil. Sempre é difícil tê-la por perto. Como a febre. E logo nos primeiros rituais, a vida nos respondeu com uma explosão severina: chegou o Davi, primeiro filho do espanca!. Nós vivemos juntos o ciclo natural da vida. E não há proximidade maior que essa. Não há teorema, lei, axioma, tese, teoria que explique o sentimento de vida. O desejo de vida contido no nascimento e na morte também. Então, durante o Congresso, nosso discurso fez-se. Diante de nós. A vida foi muito maior. Nosso conhecimento foi pouco. Nossa técnica foi pouca. Foi mínima, diante do que a vida nos disse:
“E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
mesmo quando é a explosão
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida severina.”
(João Cabral de Melo Neto – Morte e Vida Severina)
Nunca dediquei um trabalho a alguém. Mas em se tratando do Congresso, torna-se impossível não fazê-lo, me desculpem. Este trabalho é dedicado aos meus pais (pela possibilidade de sonhar em outras línguas) e aos meus irmãos (porque a morte não é o contrário da vida). Y a dotos mustedes, Goncresistas-Tafores, chumas grafias.
Isabel Stewart:
…
Dos medos mais privados aos mais coletivos, do medo de galinha ao medo de sentir medo, muito foi pesquisado e discutido durante a montagem do “Congresso Internacional do Medo”. Mas talvez o mais desconcertante tenha sido a experiência do fim: a vida empurrou a morte pra dentro da sala de ensaio de forma tão contundente que me fez sentir medo. Nada de novo sobre nossa condição fugaz no mundo. O que assusta é a indiferença do tempo, que segue independente da nossa presença ou não em seu curso.
A idéia de extinção, de esgotamento, de morte, marcaram todo o processo. Eu me revirei em índia Payá. Ou melhor: em última sobrevivente de um povo. Ao lado do meu irmão Trumak, formamos uma tribo de dois. Somos os últimos, mas não os únicos: outros quatro falam dos mesmos assuntos, com histórias diferentes.
O tempo escuta, mas não pára.
“O correr da vida, embrulha tudo,
A vida é assim…
Esquenta, esfria, aperta e daí afrouxa,
Sossega e depois desinquieta,
O que ela quer da gente,
É coragem…”
(Guimarães Rosa)
Mar à vista.
Mar alto.
Uma arca à deriva num oceano branco. Nela estão cinco exemplares de anônimos de lugares diversos, tentando se equilibrar sobre o convés estreito, para não caírem na imensidão pálida. Restos de pele e floresta. Uma tradutora faz a ponte num bote de rodas. Dois peixes-tempo circulam ao redor.
Mar costeiro.
Um falatório quase interminável. Espécie de congresso flutuante, onde cada marinheiro tenta lançar sua garrafa ao mar, com a esperança de que sua história seja capturada em alguma margem.
Oceano Pacífico.
A água que banha a nau, de tom incrivelmente asséptico, parece não oferecer perigos.
Mar morto.
Até ela surgir filtrada, derramando sua cor mais pura: vermelho-grosélia.
Mar mexido.
Nau desgovernada. Onde está o comandante? Quem dirige o leme?
Pleno mar.
Uma nova vida nasce a bordo. Um bebê, sem falar, muda o rumo da viagem.
Mar de rosas.
A tradutora abandona seu bote de rodas e junta-se aos outros na embarcação. Os tripulantes se reúnem à mesa como uma família. São nomeados: Dr. José, Tusgavo, Tradutora, Reluma e Tusgavito, Trumak e Payá. Foto para a posteridade.
Mar de lama.
Morre a tradutora. Suas últimas palavras são gravadas no horizonte. A comunicação fica comprometida. Quem navega afinal?
Mar aberto.
Os passageiros se voltam para contar o medo ao bebê.
Além mar, os peixes continuam seu curso.
Nadja Naira:
Um grupo de teatro mineiro me chamou pra fazer a luz pra uma Peça de Teatro, cheguei lá em Belo Horizonte era um Congresso, quando começamos as reuniões de criação de cenário, era uma Ópera e de repente tinham uns bailarinos em cena…
E tudo começava assim: “Qual cisne branco em noite de lua…”
Foram dias e dias e noites e noites de montagem de um grande puzzle de peças de tamanhos estranhos e arestas esquisitas, mas num clima tranqüilo e muito, muito caloroso, amoroso e tolerante. Passamos por terras de sonhos, mares de sal grosso, fizemos fogueiras, brincamos de historinhas infantis, fizemos discursos, compartilhamos nossos medos, choramos.
E finalmente, eis aqui nosso CIM, oui, yes, ya, sim, mis…
Ainda ficou faltando a coreografia inicial com os cisnes brancos da Marinha do Brasil…
Renato Bolelli:
CONGRESSO INTERNACIONAL DO MEDO É UMA EXPERIÊNCIA INTENSA
Quando iniciamos as conversas sobre o projeto, pensava-se em encenar o espetáculo num heliporto. Imagine minha surpresa. E a partir daí deu-se a gestação de algo que abarcasse uma diversidade imensa de informações e ao mesmo tempo pudesse preservar sua liberdade.
Países imaginários, pessoas imaginárias, modos e costumes que começamos a imaginar também. Como lidar com isso? O formato espacial de um congresso, a dificuldade de construir uma cena estática, mesa, cadeiras, palavra, água. O vazio.
Fundos possíveis, imaginados, e algo que surgia com a formalidade do encontro entre estranhos. Cada universo, cada ilha em si, deveria dialogar, buscar construir um território entre. Mesa, cadeiras, palavra, água. O vazio e com ele a cor branca. E assim uma paisagem anulada, devastada, concretizava-se. Podemos imaginar que a espacialidade do espetáculo é dada pela presença da cor, mas também pela ausência de paisagem.
Comecei a me interessar pelos processos de transformação da natureza. Escavação, extração, refinamento. A matéria orgânica até chegar como produto no supermercado. Devastação do mundo, de suas fontes: comida, vestes e conforto como atestado da morte na natureza? O vazio era senão o esgotamento dos recursos. A água de peixes impossíveis, a água de beber, água de matar, a água humana mas a água é do mundo e não do homem.
Seguindo nas correntes ditas evolutivas, o homem apinha-se em mesas, em seus bancos de saber científico, em cadeiras universitárias entre tantas outras e tenta nadar em meio ao que criou. Saídas possíveis? Recomeço ou continuidade? O medo é uma invenção.
A linguagem do outro, de Daniele Ávila
Texturas puras da cena, de Nina Caetano
A reimaginação no poder, de Valmir Santos
Daniele Ávila:
A LINGUAGEM DO OUTRO
Publicado no site questaodecritica.com.br
A peça Congresso Internacional do Medo, do grupo Espanca!, abriu o ACTO2, evento que acontece de 20 de outubro a 3 de novembro deste ano em Belo Horizonte. O encontro reúne três grupos de diferentes estados do Brasil: a Companhia Brasileira de Teatro, do Paraná, o Grupo XIX de Teatro, de São Paulo e o Espanca!, de Minas Gerais, e dá continuidade ao ACTO1 que aconteceu em 2007, com os mesmos grupos, que apresentaram espetáculos de seu repertório – Suíte 1, Hysteria e Por Elise. Neste ano, além de Congresso Internacional do Medo, o evento conta com dois trabalhos da Companhia Brasileira, o espetáculo Vida e o exercício Descartes com lentes, além da apresentação de Hygiene, do Grupo XIX, e das oficinas e encontros com os grupos.
Para escrever sobre Congresso Internacional do Medo e as demais peças que se apresentam no contexto do ACTO2, procuro pensar as relações formais e temáticas possíveis entre os trabalhos dos três grupos, guardadas suas diferenças estéticas, ou seja, procuro pensar como os grupos lidam com as suas questões artísticas e como a convivência das suas diferenças produzem sentido. Nessa peça, o intercâmbio entre os grupos já acontece na ficha técnica espetáculo, que tem direção de Grace Passô, do Espanca!, que assina a dramaturgia em colaboração com o grupo, iluminação de Nadja Naira, da Companhia Brasileira, e direção de arte de Renato Bolelli, do Grupo XIX. Juntos, criaram para a cena uma visualidade árida e fria, que se colore e se aquece aos poucos.
Congresso Internacional do Medo – que estreou em 2008 – deu início à programação do ACTO2 com duas apresentações, nos dias 20 e 21 de outubro, realizadas no Galpão Cine Horto – palco que de certo modo deu origem às atividades do grupo, anos atrás, quando da criação da cena que resultou no espetáculo Por Elise. O Congresso do título reúne representantes de países imaginários, que falam línguas diferentes, para discutir questões em comum a todos. A trama oferece um paralelo possível com o próprio ACTO: cada grupo vem de um lugar diferente do Brasil e cada um fala uma língua – a linguagem dos seus espetáculos são bem diferentes. Mas a comunicação se mostra não apenas possível mas bastante produtiva entre esses palestrantes – assim como acontece entre os grupos. Na peça, no entanto, a dificuldade de comunicação entre os falantes de línguas diversas é num primeiro momento um sinal de incomunicabilidade.
A questão da linguagem – o perguntar-se sobre os pormenores e problemas da linguagem – parece ser uma das questões centrais da peça: a linguagem como desencadeadora do medo, quando indecifrável, e a linguagem como ferramenta de integração e dissolução das hostilidades quando legível, decifrável. A morte e o nascimento estão em cena, mas não é a morte em si, ou a vida em si, que a meu ver se colocam em primeiro plano, mas o como falar da morte, da vida, da história e das diferenças de cada um dos presentes. Em cena, uns falam falando, outros falam dançando. Os falantes – palestrantes do Congresso – são Trumak (Marcelo Castro), Doutor José (Alexandre de Sena, que também assina os arranjos sonoros), Tusgavo Tapbista (Gustavo Bones), Reluma Divarg (Mariana Maioline). Os dançantes são duas figuras que se movimentam nos arredores do tablado sobre o qual está a mesa de debates: Marise Dinis e Sérgio Penna se aproximam e se afastam, dançam juntos e separados, como a vida e a morte, o silêncio e a linguagem.
A tradutora (Gláucia Vandeveld) e a índia Payá (Izabel Stewart), irmã de Trumak, fazem mediações de naturezas diferentes. Uma mais racional, objetiva, outra mais intuitiva, carregada de subjetividade. A tradutora é indispensável, num primeiro momento, para que a comunicação se dê entre os palestrantes e entre estes e o público. Em uma cadeira de rodas e sempre mantendo certa distância da mesa dos palestrantes, ela traduz a fala de cada um – com exceção de Trumak e Payá, que falam a mesma língua que ela e que nós, espectadores: o português. Parece possível identificar um paralelo com a presença dela e a de Payá, que não é oficialmente uma palestrante, embora esteja sobre o tablado com os outros. Ela é a única que vê a dupla que dança no entorno da cena, a única que dança com eles: dentre aqueles personagens, só ela parece saber traduzir imagens, desejos, pensamentos em materialidades outras além da fala. A presença dos dançarinos parece evidenciar essa pluralidade possível, as diferentes formas de produzir sentido numa obra de artes cênicas.
O espetáculo se divide em dois momentos: no primeiro, os palestrantes não se entendem, parece que não se interessam em ouvir o que o outro tem a dizer. A tradutora não parece ter uma preocupação em fazer com que se entendam – ela só traduz para uma língua, a de Trumak e Payá, de forma que os outros três nunca escutam de fato o que o outro diz. Até que a personagem de Mariana Maioline entra em trabalho de parto e dá à luz uma menina, ali mesmo na mesa do congresso. A partir desse momento, a natureza do conteúdo da fala dos personagens muda: eles não falam mais sobre o tema das suas palestras, nem falam mais em formato monológico, apresentando um discurso pronto, mas passam a dialogar, a ter que se comunicar entre si e são tomados por um espírito de generosidade diante do nascimento daquela criança. A tradutora é menos solicitada. Eles conseguem contar para a criança recém-nascida uma história (algo parecido com a da Chapeuzinho Vermelho) sem precisar de tradução. Cada um conta uma parte na sua língua e todos entendem, porque têm a referência em comum.
Com isso, o espetáculo coloca em jogo uma questão que credito ser essencial para a relação do espectador com a obra de arte – e também para a relação do homem com o mundo, de um modo geral : a disponibilidade para decifrar o outro, para perceber que aquilo que o outro tem a dizer pode ser legível, independentemente de um saber sistematizado a priori. O primeiro momento da peça é norteado pela desigualdade: cada um detém um saber, todos querem falar, a tradutora detém uma habilidade que os outros não têm. O segundo momento – sinalizado também por uma mudança na visualidade da cena, a virada do ângulo da mesa e a iluminação que parece se tornar mais quente – instaura um “princípio de igualdade”: todos têm a mesma ferramenta, a linguagem, e todos querem ouvir o outro: a partir disso, todos desenvolvem a habilidade de se comunicar, mesmo que ainda com a ajuda da tradutora em alguns momentos, que é convidada a se juntar à mesa. Esse “princípio de igualdade” que menciono aqui é desenvolvido por Jacques Rancière no seu livro O mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual, em que ele apresenta a trajetória e o método de ensino de Joseph Jacotot, educador do século XIX que levou a cabo uma proposta pedagógica que contradizia radicalmente a noção corrente de pedagogia da sua época – e da nossa. Jacotot partia do princípio de que, numa situação de aprendizagem, é preciso primeiro reconhecer a igualdade entre o mestre e o aluno: a capacidade de aprender algo novo é a mesma, tanto para o mestre como para o aluno.
Não cabe aqui uma exposição detalhada das ideias de Rancière e Jacotot, mas vale o apontamento de que há naquele livro questões relevantes para se pensar a relação do espectador com o teatro. Esse é o paralelo que eu acredito que se estabelece entre as ideias apresentadas ali e o que acontece em cena em Congresso Internacional do Medo: fica visível a habilidade que o ser humano tem de passar a entender o outro, de passar a ser capaz de decifrar, de algum maneira, o que antes não entendia de modo algum. Não só os personagens vão desenvolvendo a habilidade de se entender, mas o próprio espectador começa a decifrar algumas daquelas falas em línguas estranhas. Essa operação é mérito da dramaturgia, que cria situações que funcionam como pontos de apoio para essa passagem, fazendo com que as frases sejam possíveis de se adivinhar pela identificação dos contextos, pelo reconhecimento da humanidade dos personagens, mais que pelas palavras que contêm.
A tematização da tradução aparece também nas peças da Companhia Brasileira de Teatro que estão no ACTO2, Vida e Descartes com lentes, não só pela atividade de tradução de peças que marca a trajetória do grupo, mas pelo trabalho mesmo de tradução no sentido de apropriação e materialização da referência à obra de Paulo Leminski, parte determinante da pesquisa do grupo para montar Vida – sendo Leminski o autor do texto Descartes com lentes. Em ambas as peças, a tradução parece ser uma estratégia da dramaturgia e da encenação para apontar o movimento pendular dos sentidos que se engendram nas obras de arte, que nunca se querem unívocos.
A questão da linguagem no problema da comunicabilidade vai aparecer também em Marcha para Zenturo, criação do Espanca! com o Grupo XIX de Teatro, que vai fechar o ACTO2. Ali, também, há um ruído forte na comunicação verbal entre os personagens e a tentativa de fazer ver o outro, de fazer ouvir o outro, através de uma personagem que percebe o desencaixe dos diálogos – também uma espécie, um pouco enviesada, de tradutor.
Toda materialidade é tradução de uma ideia: um movimento dançado, uma frase dita, uma imagem engendrada no palco, tudo isso é tradução. O espectador, por sua vez, faz a sua contratradução, lê, interpreta, pensa o que vê sem que seja imprescindível uma legenda, um discurso explicativo qualquer. A gradual diminuição da intervenção da tradutora (e a tentativa de Payá de simplesmente imitar o som da fala de Reluma, que ela não entende totalmente) sinaliza esse processo generoso sugerido por Congresso Internacional do Medo: o de aprender a ouvir com os próprios ouvidos para decifrar a linguagem do outro.
Referências bibliográficas:
RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual; tradução de Lílian do Valle – Belo Horizonte: Autêntica, 2005. (Coleção Educação: Experiência e Sentido, 1)
Nina Caetano:
TEXTURAS PURAS DA CENA
publicado no blogue desautoria
Sábado, 19 de Julho de 2008
O dramaturgo-encenador é um pintor que dispõe de uma paleta viva; o ator guia sua mão na escolha das cores vivas, na sua mistura, na sua disposição; depois, penetra ele próprio nessa luz, e realiza, em duração, o que o pintor só teria podido conceber no espaço.
(Adolphe Appia)
Textura é o aspecto de uma superfície ou seja, a “pele” de uma forma, que permite identificá-la e distingui-la de outras formas. As texturas artificiais – e acena é uma delas – resultam da intervenção humana através da utilização de materiais e instrumentos devidamente manipualados. Em música, textura é a qualidade global do som de uma obra musical, mas freqüentemente definida pelo número de vozes na música e na relação entre essa vozes. Uma textura polifônica, em música – como no teatro – contém duas ou mais linhas de voz independentes. Como tecer as diversas vozes presentes na criação?
Aposta do Núcleo dos Festivais Internacionais de Artes Cênicas do Brasil – que a cada dois anos viabiliza um projeto de montagem a ser apresentado em todos os festivais de teatro que o integram (Festival Internacional de Londrina, Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto, Porto Alegre em Cena, Festival Internacional de Teatro Palco e Rua de Belo Horizonte, Cena Contemporânea Festival Internacional de Teatro de Brasília e riocenacontemporânea) Congresso Internacional do Medo, montagem realizada pelo grupo Espanca!, de Minas Gerais, é uma aula de inquietude e rigor cênico. Realizado em processo colaborativo – e ainda em processo – a partir do título de Carlos Drummond de Andrade, essa montagem talvez seja o exemplo mais acabado do conceito proposto para esse edição do FIT São José do Rio Preto, expresso por Luis Fernando Ramos no provocativo ensaio que integra a revista do Festival. Diz ele: “Pensar a drmaturgia da cena (…) como puro opsis, matéria concreta tornada visível, textura. Nessa hipótese, criar uma cena menos do que tecer um novelo de ações (…) seria construir uma semântica de superfícies, tessitura de cores e imagens, apresentação de objetos não previamente identificados”.
Precisamente é o que se vê na cena urdida pela insólita artesã diretora dramaturga orquestradora de vozes Grace Passô. No palco, uma mesa de tronco sobre um tablado coberto por um tapete pele de vaca. À direita e a à esquerda, ao fundo, dois vasos grandes de planta. À frente, à esquerda, um enorme filtro de água. Ao fundo, à direita, uma cadeira de rodas. Estranha mistura em que a limpeza quase asséptica do cenário contrasta com os elementos naturais que o compõem. Terceiro sinal. As luzes se apagam. No escuro, corpos adentram o palco. Suspensão. Ainda no escuro, eles se movem. Pequenos flashes de luz formam quadros à sua passagem. Suspensão. Algo que já não está ali se instala. O congresso. O tempo da construção. Silêncio. Nada está dado. Os congressistas, cinco, vestidos de branco, se instalam na mesa. Representarão culturas nações diferentes, dado manifesto nas vestimentas que trajam. Índios. Um ocidental. Oriente Médio. Os bailarinos, com quimonos pretos, instalam-se próximos ao filtro. Na cadeira de rodas, a tradutora. Mais que personagens, os seres que transitam em cena são quase metáforas construídas a partir de traços que negam a reprodução mimética. A mulher encoberta, o homem dos animais, o homem das utopias…
Jogando com simultaneidades, superposições de discursos e sistemas, passagens quase em fade, a insólita Grace tece pura dramaturgia da cena. São elementos poderosos desse jogo a interessante manipulação do discurso verbal, em que línguas inventadas se misturam ao registro poético do habitante da Ilha do Cedro/Pau Brasil. Interessante jogo de perversão de sentidos entre a palavra expressa e a tradução da palavra. O jogo poético com as palavras, as palavras em outras línguas, desconstroem constroem outros sentidos. Bem como a presença dança dos bailarinos peixes em extinção, outras camadas. E as camadas sentidos significados vão sendo construídas – repito, aqui nada é dado – não só pela cena, mas também por nós que, sentados nas cadeiras da platéia, somos chamados a sacrificar nossa passividade confortadora e, ativos espectadores dessa cena múltipla, rugosa, também criar. Aqui, ontem, nós também parimos.
Valmir Santos:
A REIMAGINAÇÃO NO PODER
publicado no site Teatro Jornal em 10/08/2014
A tarefa da crítica no teatro costuma ser empobrecida quando toma o texto em si como plataforma. A arte de nosso tempo é lida pelo texto da encenação, a totalidade da dança dos corpos e demais signos em cena. Na dramaturgia de Grace Passô, e particularmente em Congresso internacional do medo (2008), peça da safra colaborativa com o Grupo Espanca! e escalada para a 9ª Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, a matéria da palavra converte-se ela mesma em fulcro. Impossível mergulhar no oceano simbólico sem ser capturado pelos estalos verbais ou pelas “correspondências sensíveis” de que falava Baudelaire. A natureza da tradução, ofício deveras literário, ganha status de forma e conteúdo nesse espetáculo de poderes encantatórios (a transubstanciação está lá) pelas ideias e imagens que instaura.
Traduzir e criar são verbos univitelinos. O poeta e tradutor concretista Haroldo de Campos pescava isso como transcriações, transluminuras ou reimaginações, para lançar alguns dos neologismos que cunhava. O caráter expositivo da reunião de especialistas arquitetada por Passô faz da oralidade o principal veículo das línguas e das culturas em sua maioria inventadas, ou melhor, reinventadas. Em vez do temor inscrito sob ângulos geopolíticos e afins, como sugere o simulacro institucional, as abordagens dominantes versam sobre as condições subjetivas da vida e da morte, esta não como oposição àquela, mas sua essência.
Em atuação de Gláucia Vandeveld, a figura da Tradutora serve de dínamo. Sentada na cadeira de rodas e sugerindo ar combalido de quem milita há anos na profissão, ela devolve ao público, às vezes com alguma dissimulação, aquilo que os representantes estrangeiros dizem para a audiência ou uns aos outros. A peça deriva dessas triangulações. Uma vez que traduzir implica um bocado de traição e parte dos que estão na mesa transita o português, o espectador acaba incitado a apurar sua escuta para preencher as lacunas e atar as complementariedades e atritos semânticos que a dramaturgia pede.
Nesse território fértil da linguagem, da vivificação da palavra, a presença de um índio de uma nação imaginária, trazendo sua irmã a tiracolo, introduz dados da realidade e da identidade brasileiras nessa operação. O cocar e o tênis do homem originário, bem como o canto que a irmã evoca, sintetizam o mal estar de uma civilização desafiada a traduzir a si mesma. No caso da congressista representante de um país inventado, mas que se existisse estaria cravado no Oriente Médio – a burca assim indica –, ela elogio os finais felizes dos contos de fada infantis, independente do medo que possam despertar, e tampouco é estigmatizada pela sua cultura como o noticiário insiste em bombardear.
Importa menos sobre o que todos estão falando e mais as sinestesias construídas ou subvertidas na percepção da Tradutora. Mesmo quando a língua dita não é identificável pairam níveis de entendimento nas entrelinhas desse “fonemol” (lembrando Antunes Filho), para não dizer das outras intencionalidades do gesto, do olhar e do movimento.
Aos atores, o exercício de encontrar analogias e distanciamentos nessa babel dissonante requer estado de atenção redobrado. Todos equilibram bem o ato de comunicar o pensamento neutro embebido em outro idioma. A Tradutora de Vandeveld é um capítulo à parte pela função que lhe cabe e pela atriz demonstrar sobriedade e espanto lapidares.
Neutralidade, digamos, dissolvida na reta final do drama, quando o diz que diz fica em segundo plano e a sintonia universal floresce nos teimosos resquícios de humanidade. Emblemáticas, para tanto, as passagens em que o público capta as ironias sutis e ri dessa bendita estrutura capciosa que a autora e diretora descortina com o Espanca!, grupo de Belo Horizonte pautado pela pesquisa e intertextualidade estilística desde a primeira produção, Por Elise (2004).
O espaço cênico desenhado pelo diretor de arte Renato Bolelli imprime o branco dominante, no piso e no fundo, sugerindo a página vazia do livro a ser escrito. O ambiente do congresso compõe como que um aquário mimetizado do pequeno reservatório redondo de vidro que um dos palestrantes, um estudioso de peixes, traz à mesa. Mesa equivalente a um tronco talhado. Vasos de plantas espalhados e a presença contínua e ruidosa, no melhor sentido, de casal de dançarinos cativos de expressões ondulares ajudam a referenciar a submersão. São satélites do que não vem à tona, o inconsciente que às vezes sangra também. Os modos como esse não lugar também saudará a chegada de uma nova vida e a partida de outra condensam a sublimação de uma poética crítica em Congresso internacional do medo.
.:. Texto escrito no âmbito da IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo. A organização convidou a DocumentaCena – Plataforma de Crítica para a cobertura do festival, iniciativa que envolve os espaços digitais Horizonte da Cena, Satisfeita, Yolanda?, Questão de Crítica e Teatrojornal.
Direção: Grace Passô
Dramaturgia: Grace Passô (em processo colaborativo com o grupo)
Atores: Alexandre de Sena (Doutor José), Gláucia Vandeveld (Tradutora), Gustavo Bones (Tusgavo Tapbista), Izabel Stewart (Payá), Marcelo Castro (Trumak), Mariana Maioline (Reluma Divarg), Marise Dinis (Dançarina), Sérgio Penna (Dançarino)
Assessoria Dramatúrgica: Adélia Nicolete
Assistência de Direção: Fernanda Vidigal
Direção de Arte: Renato Bolelli
Assistente de Cenografia: Viviane Kiritani
Assistente de Figurinos: Gilda Quintão
Iluminação: Nadja Naira
Arranjos Sonoros: Alexandre de Sena
Música da Tribo: Daniel Mendonça
Vídeo: Roberto Andrés e Leandro Araújo – superfície.org
Coreografia: Sérgio Penna
Preparação Vocal: Camila Jorge e Mariana Brant
Técnico e Operador de Luz: Edimar Pinto
Cenotécnico: Joaquim Pereira
Costureira: Mércia Louzeiro
Produção: Aline Vila Real
Realização: Grupo Espanca!
Classificação: 12 anos
Duração: 60 minutos
espetáculo realizado através do II Projeto de Co-Produção do Núcleo dos Festivais Internacionais de Artes Cênicas do Brasil.
Congresso Internacional do Medo estreou no dia 04 de julho de 2008, no Teatro Klauss Vianna, em Belo Horizonte, Minas Gerais.
2015
Maio
– Festival Palco Giratório – teatro SESC Centro. Porto Alegre, RS.
– curta temporada no teatro do SESC Ipiranga – Mostra Espanca1 10 anos. São Paulo, SP.
2014
Agosto
– IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo – CCSP. São Paulo, SP.
Junho
– Espanca! 10 anos – temporada no Teatro Alterosa. Belo Horizonte, MG.
2013
Setembro
– mostra Rumos Teatro – Itau Cultural. São Paulo, SP.
– curta temporada no Teatro Alterosa. Belo Horizonte, MG.
2011
Julho
– Espanca! em cartaz – temporada no Galpão Cine Horto – Belo Horizonte, MG.
Junho
– Festival do Teatro Brasileiro – Cena Mineira – Teatro Guairinha. Curitiba, PR.
2010
Outubro
– Acto2! encontro de teatro – Galpão Cine Horto. Belo Horizonte, MG.
2009
Setembro
– Espanca à Mostra – Teatro do Oi Futuro. Belo Horizonte, MG.
Julho
– Festival de Inverno de Ouro Preto e Mariana – Fórum das Artes – Teatro do SESI. Mariana, MG.
Junho
– FILO – Festival Internacional de Teatro de Londrina. Teatro FILO. Londrina, PR.
Fevereiro
– Mostra Nacional de Teatro de Uberlândia. Teatro Rondon Pacheco. Uberlândia, MG.
– VerãoArteContemporânea – Temporada no Teatro Marília – Belo Horizonte, MG.
2008
Dezembro
– Riocenacontemporanea – Casa de Cultura Laura Alvim. Rio de Janeiro, RJ.
Agosto
– Cena Contemporânea – Teatro Nacional / Sala Martins Penna. Brasília, DF.
Julho
– Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto, SP.
– Estréia nacional – Festival Internacional de Teatro Palco e Rua (FIT) – Teatro do Oi Futuro. Belo Horizonte, MG.