Amores Surdos
trilha sonora:: texto de Grace Passô, direção de Rita Clemente
:: com Assis Benevenuto, Grace Passô, Gustavo Bones, Marcelo Castro e Mariana Maioline
Um pai ausente e uma mãe superprotetora criam seus filhos com muito zelo. Pequeno tem problemas respiratórios, a adolescente se refugia em seus fones de ouvido, Samuel tem dificuldades para sair de casa, o mais velho é sonâmbulo e dá trabalho nas madrugadas, Júnior mora longe e sempre liga para matar saudades. Uma família comum convive em situações corriqueiras: toma café, briga entre si, alguém adoece… enfim, vive seus problemas cotidianos. O espetáculo fala da capacidade do homem de estar dormindo, mesmo quando acordado; porque, mesmo quando acordados, os personagens não se ouvem, não se enxergam, não se percebem, em rituais do cotidiano que conduzem à alienação e à incomunicabilidade. Tudo corre como o esperado, até que todos são obrigados a reconhecer e conviver com as consequências desse amor alimentado por todos, diariamente. Segunda peça do grupo, trata de um silencioso acordo de amor que se chama intimidade. Por isso, vem dela a força que consolidou o Espanca!. Em princípio uma história normal, afinal, todas as histórias do mundo já foram contadas.
Amores Surdos estreou dia 24 de março de 2006 no palco do Guairão, em Curitiba, Paraná. O espetáculo integrou a programação de diversos festivais de teatro do país e já rodou por 29 cidades brasileiras. Pôde ser visto em espanhol no Chile (Puerto Montt), na Colômbia (Bogotá e Manizales) e no Uruguai (Montevidéu). Ao todo, foram 213 apresentações para 34.000 espectadores. Recebeu o prêmio Usiminas/Sinparc-MG nas categorias texto e atriz (Grace Passô), além de indicações ao Shell-SP (dramaturgia, direção e cenário) e ao Qualidade Brasil-SP em diversas categorias. Cumpriu temporadas em Belo Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba.
Grace Passô
Gustavo Bones
Marcelo Castro
Paulo Azevedo
Rita Clemente
Samira Ávila
Grace Passô:
Quando pensei na possibilidade de uma peça com a história de “Amores Surdos”, pensei “Ui ui! Isso diz algo, essa idéia é uma forma que expressa alguma coisa que sinto”. E então, ui ui, brotou em mim pela primeira vez, o desejo de escrever. Porque não bastaria interpretar um personagem, tratava-se, para além de um desejo de atuação, de um desejo artístico de escrever uma trama, algo para além de meu próprio corpo. Comecei a escrevê-la. Tempos depois, o grupo desejou encenar essa história e eis que ela foi sendo construída e reconstruída no processo de criação da peça. E não foi fácil.
Eu seria irresponsável se não dissesse isso: este texto nasceu como uma ode à minha família. Ao que vivemos e construímos juntos. Data os rascunhos, comecei a escrevê-lo em meus poucos 17 anos, enquanto, imagino hoje, devia estar me indagando como o amor é complexo. No começo, não imaginava que interpretaria a Mãe. E quando tive que improvisar a ordem de não matar o Grande Bicho, minha cabeça estava na minha história, quando meu pai morreu repentinamente e de repente foi preciso um grito maternalmente cru para acordar algumas pessoas de que era preciso continuar a viver.
Gustavo Bones:
OH! DERRADEIRAS DA ALMA. AGORA ENTENDO.
Talvez estivéssemos todos dormindo. Fazendo apenas o que nos desse vontade. Caminhando por aí de olhos abertos, bebendo água, às vezes vendo TV, escovando os dentes, mexendo nas gavetas… fazendo o que a alma pedia. Sem responsabilidade. Dormindo. Todos nós: eu, Pequeno, Marcelo, Graziele, Samuel, Grace, Joaquim, Paulo… esperando, inconscientes, um telefonema daquele que mora longe, avisando que desistiu de viver. E enquanto construíamos nossa família fomos percebendo a natureza desses amores surdos criados por todos. Entre nós. Diariamente. É um amor grande. Mas que às vezes sufoca. E para aqueles que têm os pulmões pequenos, respirar junto é mais difícil. Então algumas pessoas cresceram… (dar o nó no sapato é muito complicado. E exige coragem.) Outras foram embora… (o primeiro dia não é fácil, eu sei.) Mas aqui em casa agora é assim: as portas ficam sempre abertas. E quem já morreu, quem ainda precisa de colo, quem mora aqui por perto, quem está do lado de fora, quem mora longe, quem acabou de partir… todos são celebrados com muito amor. Amor maduro de quem já construiu – e viu ruir – tantos castelos. E no entanto, continuamos: Mamãe reclamando da coluna, a Grazi estudando inglês, o Pequeno entrou na natação, o vô sempre vem nos visitar… Todos com celulares nas mãos. Alguém pode estar querendo falar e isso é muito importante. Não é?
Marcelo Castro:
“Oh, como cantam no andar de cima! Há um andar em cima nesta casa, com outras pessoas. Há um andar em cima onde moram pessoas que não percebem seu andar de baixo, e estamos todos dentro do tijolo de cristal”.
(Júlio Cortázar – Histórias de Cronópios e Famas)
Estou diante do público e existe uma história entre nós. É a história das pessoas que estão diante de mim, que de fato não me escutam, que não me abrem a porta. Eu vejo as lentes dos seus óculos brilhando no escuro, ouço risos abafados pelo acrílico e eles não assistem. Quem ajuda? Pai? Amores Surdos é uma peça dolorida, que toca feridas profundas. Que aperta o nosso calo mais escondido. “Têm coisas que foram feitas pra se viver com elas”.
Paulo Azevedo:
GRANDE FÔLEGO DE UM PEQUENO PULMÃO
Pé ante pé. Descalço.
Nas últimas semanas deparei-me com a enorme dificuldade de colocar, nestas linhas, algo sobre aquele que foi e, tem sido meu filho, nos últimos anos. Filho sim. E caçula. Quem vai negar que um personagem interpretado por alguém, não é uma cria?
Escrevo porque preciso, porque dói, como diria Clarice Lispector. Já começo tendo que lidar com a escolha de palavras para compor a lógica de raciocínio, enquanto um turbilhão de sentimentos, imagens e memórias me toma. Então, por favor, venha comigo independente do tortuoso caminho que vamos percorrer até o final.
Começo pelo papel. Pelo que “Pequeno” era originalmente, antes de mim: papel. Folheei as diversas versões do roteiro e pude relembrar algumas curiosidades que deixaram de ser palavras para ser corpo. Por exemplo: Pequeno sempre foi um garoto preocupado (por isso, os ouvidos sempre atentos à “campaiña”, ao telefone e as conversas da casa, inclusive as do andar de cima); ele adorava o “çíndico” (sim, ele falava muito errado!); e, certa vez, na escola, desenhou dois pulmões minúsculos. A professora não percebeu e achou que ele tinha desenhado um detalhe da camisa. Ah, como se não bastasse todos os acontecimentos trágicos ao longo do espetáculo, ao final de tudo, ele encarava duras revelações: a primeira, que seu bicho de estimação não era macho, mas fêmea – “Imagina o impacto disso na vida de um menino?”; e a segunda, que ele estava todo o tempo, no teatro. Após a tomada de consciência, exclamava num grand finale: “Ó derradeiras da alma. Agora entendendo!”. Haja fôlego! Fôlego foi o que não faltou. Ainda nas primeiras semanas, recordo dos experimentos com objetos e improvisações. Numa delas, cada um criou um clipe para o personagem. Pequeno não pensou duas vezes: uniu o gosto pelos musicais com o sonho de respirar direito e perder o medo da água. Encheu dois balões de água, apertou-os contra o peito. O olhar era de dar dó. Ao estourarem, a poça foi o suficiente para ele se esbaldar ao som de “Cantando Na Chuva”. Não vou esquecer o olhar dos colegas ao final desse momento, no mínimo surreal, que se restringiu à sala de ensaios.
Isso me remete a outra lembrança, essa, vista pela platéia: num determinado momento, Pequeno conversava com Samuel, já do lado de fora da casa. Pela primeira vez, ele percebia a presença dos espectadores e buscava compreender: quem eram? o que faziam ali, na casa dele? E queria saber mais: “Por que não falam?”. No segundo dia de apresentação, no Festival de Curitiba (após uma estréia no mínimo, traumática!), uma das peças do castelinho caiu fora da área de cena. Lembro de olhar para o espectador como se pedisse de volta. Com sorriso, ele me entregou. O pacto estava feito. Aliás, esse pacto resultou em instantes de extrema sutileza e companhia. Mesmo na distância dos espaços maiores, era possível identificar no olhar das pessoas: o teatro feito ali era uma invenção coletiva, fruto da parceria entre quem faz e quem vê e acredita no que é feito. Eu sou uma criança. Não havia dúvidas: o olhar ingênuo, as linhas tortas de um corpo ainda sem o aprendizado dos limites do mundo adulto, a sexualidade ainda sem contornos conscientes, fora de qualquer moral.
Enquanto fuço as gavetas, fico imaginando que Gentil, o pai, talvez tivesse uma relação secreta de muita proximidade com Pequeno e mais: que ele ajudava a cuidar do bicho de estimação! Quem já viu “Amores Surdos” sabe da gravidade disso! Será que foi numas das horas de “dar comidinha” ao filhote, que Gentil, distraidamente foi… Não, não é possível. Não consigo controlar os pensamentos (todos nessa linha, já aviso). Parei.
Cada personagem, um timbre, um registro sonoro. A afinação se deu aos poucos, a longo prazo, até ser possível escutar cada instrumento e melhor: o conjunto. Nesse trabalho é fácil perceber o quanto a ação de um gera conseqüências, reflexos. Como na vida. Talvez seja esse o principal ponto: vivemos cercados pelos outros. Não é possível ignorar a convivência. Dê um passo e haverá mudanças. Não dê, e outra mudança também acontecerá. Não há saída. Nem bela, nem feia. O amor que sufoca; as palavras sinceras e confessionais jogadas ao vento; a estranheza de ver a cor dos olhos do outro, que cresceu ao seu lado, e ver que já não é mais como foi registrado um dia; a vontade de esticar a coluna torta; a dificuldade de calçar os sapatos que delimitam o tamanho dos pés ao mesmo tempo em que o abrigam; a briga entre o que idealizamos e a beleza do realizado. Tudo isso está em nós, criadores. Ao nosso redor e está nessa obra. Obra na qual as pérolas são limpas após cada espetáculo para serem lançadas, novamente, na próxima sessão. Para muitos.
Paulo Azevedo, “Gentil” do Pequeno.
Madrugada do Dia dos Professores /2008.
Rita Clemente:
Esta obra é feita de dissonâncias, está baseada na diferença. As notas são mínimas, frações de tempo. É como ouvir um instrumento antigo, a princípio desconforta aos ouvidos mas aos poucos faz vibrar na memória… O tempo… Sempre. Rara experiência.
Samira Ávila:
Amores Surdos veio para mim aos poucos. Rápido e intenso e aos poucos. Como a construção de uma casa. Preciso habitá-la, mas antes saber que “tipo” de casa eu quero construir. E pensando assim não viso, inicialmente, o resultado estético desta casa, mas sim como eu quero me sentir dentro dela. Assim como é mais fácil sentir nossa família do que enxergá-la, ouvi-la. Pairava no ar as incertezas e as mil possibilidades dos tantos moradores de Amores Surdos. Já não éramos mais vizinhos, mas Família (e sobre este tema anotei num caderno uns tópicos sobre algumas “funções” da Família que achei em algum lugar: “geradora de afeto”, “proporcionadora de segurança e aceitação pessoal”, “proporcionadora de satisfação e sentimento de utilidade”, “asseguradora da continuidade das relações”, “proporcionadora de estabilidade e socialização”, “impositora da autoridade e do sentimento do que é correto”). Obviamente que não tínhamos esta família e para construir a nossa – torta, surda e real que fosse – era preciso perder o chão de transeunte, de passante, de meros conhecidos…O trabalho com a Rita foi fundamental para este processo básico de (des) estruturação. Ela nos fez ver a nossa casa muito engraçada, meio sem teto, com pouco chão. E fomos meio que construindo do zero. Por Elise foi um encontro surpreendente, Amores Surdos era vontade de ficar. E assim segui neste processo, tentando achar um chão mais firme, mudando os móveis mil vezes de lugar, com medo tanto de entrar quanto de sair desta casa, oscilando…Até que percebi que este processo era maior que nosso espetáculo em si, saía inclusive fora dele. Também percebi e principalmente aceitei que, mesmo se meu quarto não estivesse em ordem, a casa já estava de pé. A casa não iria cair, ela sustentava meus passos incertos. Até que eles ficassem mais firmes…E não é assim que a gente aprende a andar?
A Inclemência do indizível, de Antonia Pereira Bezerra
Impermanências lamacentas, de Júlio Groppa
Grupo Espanca! mantém excelência na segunda peça, de Sérgio Sálvia Coelho
Por Elise e Amores Surdos: poéticas textuais, de Marcos Antônio Alexandre
Antonia Pereira Bezerra:
A INCLEMÊNCIA DO INDIZÍVEL
Publicada no Painel Crítico do Festival de Teatro de São José do Rio Preto em 14/07/07
O Espetáculo Amores Surdos do Grupo Espanca, Belo Horizonte/MG, simula uma estrutura inicial previsível. Digo simula, porque esta estrutura aparentemente previsível é profundamente abalada, segundos após o início do espetáculo. Como num crescendo, o jogo dos atores – de uma simplicidade aterradora – não cessa de sacudir o espectador. Na verdade, a forma como o Grupo Espanca nos conta a história de “uma família comum, composta por um pai ausente, uma mãe zelosa, um caçula e mais quatro filhos – Grazieli, Joaquim, Samuel e Jr”, surpreende e interpela o espectador com sua poesia cortante e sua ironia desconcertante.
A Trama de Amores Surdos se desenvolve numa espécie de Hu is Clos (Entre quatro Paredes), onde as personagens empreendem embates e combates aparentemente rotineiros e banais – como parecem ser os embates e combates empreendidos por todas as famílias normais. Curiosamente, o que se desenvolve sob os olhos estranhados do espectador é apenas um artifício. Amores Surdos grita o indizível numa sorte de desespero agudo, sensível.
Seguindo essa progressão, tudo ou quase tudo é velado. O essencial nunca é explicitado. É apenas sugerido pela narração ou pelo extraordinário jogo dos atores. Magníficos atores! Essas sugestões sutis, porém desconfortáveis, têm lugar logo de entrada, quando um ator se dirige ao público, advertindo-o de que a família receberá um telefonema de um irmão que partiu para o estrangeiro e que um desses telefonemas será para dizer que esse irmão suicidou-se. O telefone toca no final da peça – se é que a peça tem fim! – e o irmão caçula, sozinho em cena, não atende, permanece estático, diante do público, na treva.
Numa mesma perspectiva, a verdadeira sujeira – a lama, vaza das estranhas entranhas da família, ultrapassa a parede velada, irrompe o palco e se epalha aos olhos de todos! O público desconhece a origem e causa dessa lama. Ela emerge à superfície como que diretamente eclodida das profundezas do inconsciente coletivo (familiar). É nas discussões explosivas acerca dessa sujeira que o irmão caçula acaba confessando a presença de um hipopótamo dentro de casa. Ele cria um hipopótamo há cinco anos e esse monstro, supostamente, devorou o chefe da família – o Pai. Estranho e belíssimo eco com Os Rinocerontes, de Ionesco.
Amores Surdos pode ser lido como uma balada absurda regida sob a batuta de um realismo-naturalismo limítrofe. E já que tocamos no domínio do realismo-naturalismo, assinalemos as cenas do irmão Samuel, enclausurado do lado de fora, desesperado, sem acesso à casa. Um Tenensee Williams revira do. Um Zoológico de Vidro (A margem da Vida) às avessas. Samuel vive pateticamente à margem dessa família. Ele quer entrar, mas não tem a chave. Ninguém lhe abre a porta. Mesmo do lado de fora, ele tenta acompanhar o ritmo da família: seu sapateado é de uma tristeza poética cortante! De uma beleza patética tocante!
Sob todos os aspectos Amores Surdos coloca mais questões do que respostas, mais problemas do que soluções. Saímos do espetáculo com inúmeros enigmas, dentre os quais:
Que lama é essa que jorra da intimidade dessa família?
Que indizível inclemente é este que traz à luz o que estava oculto e deveria permanecer oculto?
Reconhecer essa sujeira, aceitá-la, como propõe a personagem da Mãe – têm coisas com as quais a gente precisa viver” – nos purificaria? Nos tornaria mais leves? Talvez! O fato é que, após a incontinente crise da Mãe, os filhos decidem por não matar o hipopótamo – o monstro – e iniciam angustiados e resignados a limpeza da lama.
Do ponto de vista técnico, um outro insolúvel e agradável enigma se impõe, desta vez no plano da interpretação dos atores: que jogo é esse que, ao misturar as linguagens – absurdo, realismo, music hall dentre outros ecos, provoca tanta estranheza, tanto fascínio? Bendito hibridismo! Bendito Grupo Espanca!
Júlio Groppa:
IMPERMANÊNCIAS LAMACENTAS
Publicada no Painel Crítico do Festival de Teatro de São José do Rio Preto em 14/07/07
Se, tal como a mítica cristã se esforça em nos convencer, seríamos barro e sopro, tidos como matéria de uma permanência transitória que costumam intitular existência, o grupo mineiro Espanca!, com Amores Surdos, prova o inevitável contrário. Somos lama, espasmo e nada além: substância precária e instável daquilo que se chama vida. E entre existência e vida não há sinonímia necessária, nem suficiente. Não pode haver. Vida é expansão desenfreada, vibrátil, nômade, que ultrapassa o existir e seus limites obtusos. Ultrapassagem de si, sem trégua e sem perdão. Barro em estado de liquefação, convertido em fluidos lamacentos, escorrendo ao léu. Impermanência pura, pois.
E é no interior de uma das práticas humanas mais cooptadas pela reiteração e pelo ensimesmamento (o universo familiar e suas estereotipias) que Amores Surdos vai subtrair um sentido de estranheza e insta bilidade do viver ali disposto. Melhor dizendo, vai decretar um significado intensivo para as formas de vida que lá se desenham dramaticamente.
A peça desloca e desfixa, por assim dizer, um território identitário que se alega em crise constante, mas que persiste incólume em seu encapsulamento contra o mundo: as mães persistem morrendo de medo de barata, os pais persistem com medo de ladrão, ambos persistem jogando inseticida pela casa, botando cadeado no portão – na acepção precisa de Arnaldo Antunes.
No universo de Amores Surdos, ao que parece, inseticidas e cadeados não bastam para proteger aqueles cinco do mundo; este os invade com seus sons, seus apelos. É um universo atravessado pelo tempo presente e seus contra-sensos. Não obstante tal conjuntura, e por mais cronicamente inviáveis que se apresentem de largada, as relações entre as personagens exalam amor na chegada. Amores brutos, amores perros.
Daí a pendência do título. São amores, sim, mas não são surdos. Neles nada há de deficiência ou falta. Ao contrário. Se tomados como índice da necessária impermanência da vida, nada lhes falta. Surdos, cegos ou paralíticos, serão sempre amores, e isso lhes basta, ou deveria lhes bastar, já que se trata de uma das coisas “que foram feitas para se viver com elas” – a mais fundamental, talvez.
Ainda, pelo fato mesmo de os amores serem sempre o que são, as personagens exuberam continência uma à outra. Todas se afetam mutuamente, co-habitam o espaço cênico entremeadas e confundidas em e por suas estranhezas. Estão ali para serem testemunhas e co-participes do viver sob o mesmo teto, sob o mesmo nome e, em última instância, sob a mesma lápide, a qual se ensaia com a partida iminente de um deles.
Trata-se de amor tão-somente: substantivo solitário, prática ermitã, análoga ao “pó das frestas” de que fala uma das personagens. Uma esp écie de esplendor banal incrustado no cotidiano e do qual pouco (e poucos) nos damos conta.
Assim, o atual trabalho do grupo Espanca! resulta tão instigante quanto acalentador, já que finda por ofertar opulência e, ao mesmo tempo, delicadeza à platéia durante a breve hora de duração do espetáculo. Breve porque condensada, ágil, intensa.
Sem delongas, o espetáculo é de uma beleza tocante.
Poder-se-ia contra-argumentar que haveria irreverências mal-colocadas; que faltaria uma leve lapidação do texto; que haveria elementos cênicos discutíveis; que uma maior sobriedade interpretativa, algumas vezes, seria bem-vinda; que, outras vezes, a música não soaria inteiramente convincente. Nada disso importa. O que conta é o lastro dramático que sustenta o espetáculo, o qual ganha corpo à moda da lama que invade lentamente o palco e os corpos dos atores.
Talvez isso se deva, ao menos em parte, à presumível mão forte da dramaturgia. Nenhuma outra analogia seria mais apropriada do que aquela em que, em cena, a dramaturga (e também atriz) carrega no colo, literalmente, um dos atores meio metro mais alto do que ela. É a expressão mais fidedigna, ao que parece, da vontade de potência que emana de seu texto.
Igual destaque deve ser atribuído aos outros quatro jovens atores – todos indiscutivelmente competentes. Entretanto, deve-se ressaltar que aquele que interpreta Samuel (Marcelo Castro) tem uma atuação primorosa, privilegiada talvez pelo efeito cênico de sua clausura transparente, a qual emoldura uma extraordinária força vital de seus gestos, de seu modo de estar no mundo e no palco. Personagem e ator em arrebatadora consonância. A vida em sua melhor forma (artística), pois.
Por fim, que se saiba: no meio do caminho tinha um hipopótamo; tinha um hipopótamo no meio do caminho. Dele vertiam lama e espasmos. Nada além? Impermanência, talvez.
Não, definitivamente essa história não havia sido contada antes.
Sérgio Sálvia Coelho:
GRUPO ESPANCA! MANTÉM EXCELÊNCIA NA SEGUNDA PEÇA
Publicado na Folha de São Paulo em 07/02/08
Em arte, quando a consagração vem já na primeira empreitada, a segunda pode ser um pesadelo. O Grupo Espanca!, por exemplo.
Tendo estourado inesperadamente com “Por Elise”, no Festival de Curitiba de 2005, e multipremiado pelo Brasil afora, o seu segundo espetáculo gerou uma forte expectativa: seria sorte de principiante?
O problema é que, se o espetáculo “Amores Surdos” fosse muito diferente do primeiro, daria a impressão de falta de projeto, de franco-atiradores em busca de fama.
Esperava-se uma fábula sutil, como a primeira, com frases aparentemente ingênuas que iriam ganhando sentidos cada vez mais profundos, a cada leitura. Mas, no entanto, se fosse muito parecida, diluiria o impacto inicial: o grupo estaria seguindo uma fórmula rentável.
Diário de criação
Acontece que nada é por acaso no Espanca!. Basta checar no blog do grupo o detalhado e bem escrito diário de criação de “Por Elise”.
Desde o primeiro ensaio, de 2005, o grupo busca em conjunto uma linguagem não necessariamente nova, mas que sirva para eles contarem o que precisam contar.
Por isso, mais do que comparar um espetáculo com o outro, é revelador comparar a atual temporada de “Amores Surdos” com a de 2006, no Sesc Pompéia.
O texto nunca deixou de evoluir, as marcas se tornaram mais essenciais e precisas. O que parecia uma referência excessiva ao universo de Ionesco (uma espécie de síntese entre “Rinoceronte” e “Amadeu ou Como se Livrar Dele”) tornou-se uma fábula orgânica, extremamente pessoal, combinando o pueril com o visceral – como na montagem de “Por Elise”.
Desta vez a direção não é mais da autora Grace Passô, mas de Rita Clemente. Com isso, o grupo ganhou uma estética um pouco diferente, com incorporação de um cenário quase realista – e um pouco desajeitado – e marcações mais abstratas.
No entanto, a interpretação dos atores não deixa nunca o espetáculo se tornar hermético ou aleatório.
A força do elenco
Assim, Paulo Azevedo, um ator de grande altura, faz o papel de “Pequeno”, o frágil irmão mais novo, sem evitar o grotesco, mas sem cair no ridículo, em performance inesquecível.
Passô reitera sua função materna, com a força habitual, mas desta vez a função de narrador é feita sobretudo por Gustavo Bones, o irmão que, sonâmbulo, se dirige à platéia, em divertido truque metalingüístico.
Marcelo Castro, com um personagem menos definido (o irmão que não consegue sair de casa) e Mariana Maioline (a irmã alheia), com menos experiência de atriz, completam o elenco de grande cumplicidade em cena.
Comédia? Tragédia? Bufonaria? A dificuldade de se pôr um rótulo em “Amores Surdos” é a garantia de que muito ainda virá do Espanca!.
Um conselho apenas: não se apresse em aplaudir na cena final, no escuro. O final é desnorteante.
POR ELISE E AMORES SURDOS: POÉTICAS TEXTUAIS, de Marcos Antônio Alexandre
publicado no Dossiê Espanca do site Horizonte da Cena em setembro de 2015
Dona de Casa: Historinha eu tenho mil. Poderia contar várias aqui para vocês. Tem a da senhora que brotou uma alface no meio do corpo dela. E ela se abriu para a vida. Essa é ótima. Uma das melhores que já ouvi por aqui. Tem a daquela mulher que estava triste andando na rua e caiu no bueiro: só que lá dentro encontrou um homem na mesma situação. E então eles ficaram alegres. Olha que loucura. […] E há outras histórias sobre moradores daqui… como dizia o Valico: “histórias vitalícias” Oh! Valico.
Ela se lembra do Valico.
Dona de Casa: Ele teve um enfarte no coração e durante o enfarte começou a dizer, me dizer uma porção de palavras bonitas e espontâneas. A vida dele se enfartou e ele teve um ataque de lirismo. Eu juro. Muitas das coisas que eu falo aqui são dele, que gravei daquele momento.
[…]
Cai, vindo do alto, um abacate próximo a Dona de Casa. Ela sente medo.
Eu sou aquela que há alguns anos plantou um simples pé de abacate no quintal de sua casa. Ele cresceu. E então eu vivo assim. Assim! (ela sente medo) Cuidado com o que planta no mundo! Mas por aqui, como eu, existem outros moradores desprotegidos, mesmo com cães dentro de casa. Companheiros de muros: muros de tijolos, muros de pele. Sabe “proteção” é mesmo bem importante. Eu, por exemplo, sempre quis colocar colchões largos em volta do pé de abacate de minha casa. […] (PASSÔ, Por Elise, 2012, p. 14-15)
Joaquim: Boa noite. Obrigado por terem vindo. Desculpem começar assim, cortando o sonho de vocês, mas para que tanto suspense? Todas as histórias do mundo já foram contadas. Essa é só mais uma história de uma família comum, que toma café, em que um briga com o outro, em que um adoece, enfim: com nossos problemas cotidianos. No começo, este telefone vai tocar, porque meu irmão, que mora longe, está com muitas saudades de nós. Depois nós vamos ficar aqui, convivendo com nossos hábitos particulares; até que no final o telefone vai tocar novamente, nós vamos atender e receber a notícia de que meu irmão se suicidou. A nossa história é essa.
Vocês são grandes, eu sou grande, ninguém aqui é Pequeno… todo mundo aqui sabe onde está. Todos sabem que amanhã eu vou repetir as mesmas coisas que eu estou falando agora. Todos sabem que amanhã eu vou entrar nesse lugar e dizer:
Boa noite. Obrigado por terem vindo, mas todas as histórias já foram contadas… […]
É isso: todas as histórias do mundo já foram contadas… Vocês sabem: em alguma hora, um celular vai tocar aí (apontando o espaço da plateia), algumas pessoas vão pensar: “Nossa, que falta de educação deixar o telefone ligado aqui!” Aí o dono ou vai desligar seu telefone para ser fiel à educação que sua família lhe deu, ou vai, sem culpa, atender, falando baixo: “Oi, tô em outra realidade! Depois te ligo!” […] (PASSÔ, Amores Surdos, 2012, p. 18-19)
“Há que ser imparcial ao voltar o olhar para uma produção artística”, reza o manual de crítica tradicional. Não obstante, na minha concepção analítica, esta característica sempre é – ou deveria ser, em nível geral, – colocada em xeque, pois, em primeiro lugar, só me proponho a discorrer sobre algum trabalho artístico pelo qual sinto algum tipo de identificação e há que se destacar que as identificações nem sempre estão no âmbito do positivo. Em segundo lugar, considero que todas as propostas espetaculares apresentam aspectos positivos e negativos que merecem ser destacados. Não vejo sentido evidenciar os aspectos negativos quando não for para favorecer ao crescimento do trabalho do grupo que está recebendo a minha leitura.
Neste sentido, falar sobre o trabalho do Espanca é um privilégio, pois a minha relação com o grupo está dentro do universo dos afetos que tanto prezo. Apesar de meu objetivo aqui ser manifestar o meu olhar crítico, não me privo de destacar as minhas subjetividades pelo fato de considerar o grupo um dos coletivos favoritos dentro do contexto mineiro. Diante de seu já vasto repertório, elejo para esta breve reflexão os seus dois primeiros trabalhos, “Por Elise” e “Amores Surdos”, pois se tratam de encenações singulares que me permitem refletir sobre distintas possibilidades de leituras: os espaços intervalares da memória, os lugares de representação das identidades dos sujeitos e de suas subjetividades na contemporaneidade, o teatro pós-dramático, ecos de um realismo mágico.
A peça “Por Elise” foi escrita, em 2005, por Grace Passô, durante o processo de criação do espetáculo, em parceria com os atores Gustavo Bones, Marcelo Castro, Paulo Azevedo e Samira Ávila, sendo que esses últimos autores foram substituídos posteriormente por Sérgio Penna e Renata Cabral. Por sua vez, Amores Surdosestreia em 2006. No elenco, além da autora, Grace Passô, Gustavo Bones, Marcelo Castro, Paulo Azevedo e Samira Ávila, que foram substituídos, respectivamente, por Assis Benevenuto (que assume a personagem Joaquim, interpretada na primeira montagem por Gustavo Bones, que, por sua vez, passa a interpretar a personagem Pequeno) e Mariana Maioline, em 2009.
Em nossa contemporaneidade, muito se discute sobre teatro pós-dramático e os argumentos e proposições de Hans-Thies Lehmann. Patrice Pavis, no artigo “Teatro Pós-dramático” (2014), traça um panorama sobre o conceito, apresentando as origens, alguns problemas, desafios e encorajamentos. O crítico elenca quatro desafios, entre os quais, para esta reflexão, destaco “a heterogeneidade”:
o dramático (o textual) e o cênico (o performativo) estão claramente imbricados; daí resulta um objeto artístico e uma noção teórica (o PD) bastante heterogênea, entretanto adaptada às obras e ao mundo com o qual nos relacionamos. Nenhuma teoria dos gêneros dramáticos, e ainda menos uma teoria das práticas cênicas, seriam capazes de incluir todos esses espetáculos.
Os diferentes espetáculos (performances) do PD não se definem por uma essência ou por características comuns, mas sim por práticas cênicas e sociais radicalmente diferentes umas das outras. Não somente a representação é a soma heterogênea das artes, dos materiais, ou dos discursos, mas eles próprios são heterogêneos e não específicos […] (PAVIS, 2014, p. 16)
Julgo pertinentes as considerações de Pavis pelo fato de o crítico se mostrar consciente da imbricação, da heterogeneidade e das diferenças que se fazem presentes entre as propostas espetaculares contemporâneas. No caso dos espetáculos aqui discutidos, apesar de distintos, considero que ambas as encenações foram produzidas com referências nos argumentos expostos por Pavis, trazem elementos que dialogam entre si e, por sua vez, são estas singularidades que me interessam.
Se, em “Por Elise”, temos a figura emblemática da personagem Dona de Casa que inicia o espetáculo anunciando que “tem mil histórias para contar” e, como uma “narradora brechtiana”, abre um leque de poéticas textuais que passam a ser divididas com os espectadores; em Amores Surdos, temos a presença de Samuel, que abre o espetáculo lendo uma carta cifrada e rebuscada: “Sabeis o quanto o dia a dia encerra os nossos sentidos, desenha nossas almas no hábito e, portanto, o quanto a vida cá nessas quatro paredes não é doce, branda ou suave. […]” (p. 17), que tudo indica haver sido enviada pelos vizinhos moradores do apartamento superior com os quais a família não estabelece uma relação “amistosa”; para, em seguida, entrar em cena a personagem Joaquim, que como um contador de histórias “contemporâneo” – por que não pós-dramático? – também quebra – brechtianamente – o pacto ficcional, revelando ao espectador um dos desfechos da trama – a morte do irmão em um país estrangeiro longe da família. Assim como em “Por Elise”, sentimentos de solidão, medo, incapacidade e incomunicabilidade são evidenciados também em “Amores Surdos“.
Os sentimentos, subjetividades e as identidades fragmentadas de cada personagem são desvelados nas ações físicas e na atuação de cada ator. Em Por Elise, uma Dona de Casa, a suposta Elise, uma mulher contadora de histórias (uma griot), aquela que sabe a história de todos, mas não é capaz de lidar com a sua, que cria galinhas, mas tem dó de matá-las; um Funcionário, que se veste com uma roupa que tem uma proteção de espuma, pois trabalha lidando com cães, não se envolve com as coisas que o rodeia, junta dinheiro para ir para o Japão e tem a função de sacrificar o Cão (Homem-Cão) da personagem Mulher, uma jovem, vestida de vermelho, frágil, sensível, que tem no seu cão a única possibilidade de afeto e tem o seu caminho cruzado pelo Lixeiro, que corre o tempo todo atrás de um caminhão de lixo, imaginando que o mar é o seu horizonte, a possibilidade de fuga, de viagem, de encontros. Talvez, esta personagem represente a utopia. A presença da personagem Homem/Cão na trama é fundamental para o desenvolvimento e desenlace da obra. Se, em princípio, ela possa ser vista e interpretada apenas por um ator vestido com um moletom marrom, sua movimentação, ao longo do desenvolvimento do espetáculo, vai alternando com ações tipicamente humanas – andar sobre as duas pernas e beijar a boca das outras personagens, que traz uma forma de manifestação do afeto humano e, ao mesmo temo, remete às lambidas, que são uma demonstração de afeto dos cães. Os trejeitos trazidos para as cenas também nos remetem aos de um cachorro: os latidos (palavras/brados/poéticas textuais) próprios de um cão, brincadeiras (partituras) corporais como saltar ou bater as mãos (patas) em sua dona. Com a interpretação do Homem/Cão, Marcelo Castro assume as características de um ator-performer, aquele que Pavis se refere como ator pós-dramático:
O ator PD é um ator performador: o performador não tenta construir nem imitar um personagem, ele se situa num cruzamento de forças, dentro de um coralidade, inserido num dispositivo que agrupa o conjunto de suas ações e de suas atuações físicas. Ele se apresenta como uma simples presença da pessoa tendo subtraído o personagem, ou como numa competição de resistência vocal e física (Pollesch, Castorf). Ele não é mais obrigado a entrar nas emoções do espectador por meio da imitação ou da sugestão de suas próprias emoções (Einfühlung), mas segundo a feliz formulação de Roselt, ele deve sair da identificação (Ausfühlung), abandonando o pântano da simulação das emoções, para alcançar as suas próprias emoções, tal qual um desportista, um intérprete musical, um membro de coro, um técnico ao serviço não da imitação humana e de uma ilusão teatral, mas de um coletivo de enunciação.
Na minha leitura, o ator-performer e sua personagem atuam no limiar entre o representacional e o ficcional, jogando com uma tessitura corpórea, deixando que os espectadores se sintam envolvidos pelas poéticas textuais sugeridas por cada cena, que todos se vejam embebidos pela “ilusão teatral”.
Estas poéticas textuais se manifestam em outras partes da encenação como no momento em que o público presente – ou pelo menos parte dele – reconhece, por meio de uma reminiscência de memória, uma música que lhe é familiar: a mesma de um caminhão de gás que passava na porta da casa onde residia em um bairro da periferia de Belo Horizonte ou de uma cidade do interior das Minas Gerais, ou seja, trata-se da música “Pour Elise”, de Beethoven. Estas subjetividades se corporificam nos diálogos entre a Mulher e a Dona de Casa e, dentre tantas pérolas poéticas ditas, eclode a fala da Mulher, um jorro de melancolia: “O caminhão de gás. Que música bonita para se comprar gás chorando, não é?” (p. 53). A sequência é um dos momentos mais belos da encenação:
Mulher experimenta para si a Cerimônia das Palmas, enquanto se ouve a música ‘Pour Elise’, de um caminhão de gás que passa por ali.
Mulher procura sua força. Faz a sua Cerimônia das Palmas.
Mulher: Eu sou forte, como um cavalo novo, com fogo nas patas, correndo em direção ao mar. Eu sou forte, como um cavalo novo, com fogo nas patas, correndo em direção ao mar! Deus, eu não vou lhe incomodar. Eu juro. Pode ficar aí. É só pra ficar olhando. Eu vou me levantar daqui sozinha e vou voltar a correr porque é da Ordem. E, se for necessário, eu vou começar tudo de novo. Vou acordar de manhã, fazer o café e ligar a secretária eletrônica, o alarme, e vou colocar cacos nos muros, e olhar meu jardim e correr novamente. Porque eu sou forte, porque eu sou forte.
Ela chora. Ela chora.
Mulher: E vou criar outros instantes e ninguém vai perceber que estou criando, porque todos vão se envolver! TODOS! E que venham os fins, que venham todos os fins, porque eu sei recomeçar, eu sei! Quem respira por mim? Quem respira por mim? Porque eu sou forte, como um cavalo novo, com fogo nas patas, correndo em direção ao mar. CORRENDO EM DIREÇÃO AO MAR. CORRENDO EM DIREÇÃO AO MAR. CORRENDO EM DIREÇÃO AO MAR! (p. 54-55, maiúsculas do original).
As palavras ressoam em tom de lirismo e de prédica e desvelam um fluxo de pensamento em que a subjetividade da personagem é apresentada, em princípio, de forma desconexa, mas, em seguida vai ganhando contornos de esperança, de desejo de mudanças e, novamente, o mar é a metáfora que representa esta possibilidade de transformação.
Ao final, depois de o espectador entrar em contato com as identidades fragmentadas de todas as personagens, depois de conhecer as fragilidades dos sujeitos em seus encontros casuais e por meio de suas histórias entrecortadas, fica latente o latido-bramido do Homem-Cão, que encerra, alegoricamente e em tom didático, o espetáculo: “CUIDADO. CUIDADO COM O QUE TOCA. COM A CAPACIDADE QUE GENTE TEM DE SE ENVOLVER COM AS COISAS. COM O AMOR, QUE ESPANCA DOCE. CUIDADO. FAÇA ISSO POR MIM. POR MIM! POR MIM! POR MIM!” (p. 57, maiúsculas do original).
Os sentimentos também podem ser considerados um dos motes da dramaturgia e da encenação em Amores Surdos. O pacto estabelecido com a personagem Joaquim logo ao início da encenação, além de revelar ao espectador que o irmão, que vive em outro país, irá morrer durante a encenação, como já foi descrito, também deixa transparecer que ele é sonâmbulo e é o seu sonambulismo que passa a desvelar as subjetividades de toda a família, composta por ele, o filho mais velho, que tem uma relação mal resolvida com a Mãe; o Pai, Vicente, que é citado o tempo todo durante a encenação, mas não aparece; a Mãe, superprotetora e controladora de toda a família, carinhosa em alguns momentos e, em outros, ríspida com os filhos; Samuel, frágil e inseguro, vai começar o seu primeiro dia de trabalho, mas não se sente seguro para encarar o mundo exterior à sua casa; Graziele, uma adolescente, que usa o tempo todo um headphone que ganhou de presente do irmão que vive fora, ela “está na fase em que imagina a vida como um clipe de música (p. 23); Pequeno, tem crises de asma, recusa-se a calçar os sapatos, é apaixonado pela menina do apartamento de cima, tenta durante toda a encenação contar à família um segredo: “Mãe… Sabe naquele “quando” que eu botei gesso no braço? […] É que… Nada não… (p. 33)”; Junior, o irmão que vive em outro país, liga para casa constantemente demonstrando que se encontra extremamente solitário: “Alô, Junior? Como vai? […] mas por que está com essa voz/ Júnior! Você está chorando? Calma, o que você tem? que foi? Aconteceu alguma coisa? Aconteceu? Junior!” (p. 50), um vetor que justifica e nos permite entender depois a suposta morte anunciada pela personagem Joaquim.
A relação com Os Rinocerontes (1959), de Ionesco e um possível diálogo com a estética do absurdo tornam-se evidente na dramaturgia e na encenação de Amores Surdos. No entanto, prefiro destacar, nesta leitura, ecos do Realismo Mágico – assim como os vislumbro, em Por Elise, nos abacates que pendem e caem do teto e, poeticamente, provocam, espancam palavras doces como aquelas deixadas para o filho pela personagem Valico quando, enfartando, poetiza: “OH VIDA, FARPA DE MADEIRA INTENSA! A NATUREZA NÃO É DOCE, OS FRUOS É QUE SÃO” (p. 25, maiúsculas do original) – quando Pequeno revela à família que trouxe um hipopótamo do zoológico, que, no começo ele o colocava sua piscininha, mas o bicho cresceu e ele acabou o deixando no quarto do irmão Júnior. A sua ideia era aprender a respirar com o animal, pois os hipopótamos têm um pulmão enorme, assim ele se curaria de sua asma. Pequeno revela que William, nome que deu ao seu bicho de estimação, já vivia com a família há cinco anos e que havia comido o Pai logo quando chegou ao apartamento. Apesar de uma história “surreal” (no sentido trivial da palavra) e fantasiosa que parte de uma perspectiva de uma criança, como em uma narrativa de Gabriel García Márquez, os conflitos da família e a figura alegórica do animal se fazem críveis aos olhos do espectador. O universo do realismo mágico (maravilhoso) se configura: desprender-se da realidade por meio de uma história, em princípio “fantástica”, descrita de forma “realista” dentro de uma narrativa, neste caso, dentro das ações dramatúrgicas.
Quando é relevado que o hipopótamo engoliu o Pai, a família, que em si já era desestruturada, fica em pânico, Joaquim quer matar o animal: “SE NÃO MATARMOS, ELE VAI ENGOLIR MAIS UM DE NÓS!” (p. 62, maiúsculas do original); Graziele teme pelo irmão; Samuel, mais uma vez, volta para casa, pois não consegue sair para enfrentar o primeiro dia do trabalho e insiste tocando a campainha, chorando desesperadamente, implorando para que lhe abram a porta; a Mãe, num primeiro momento, bate no Pequeno, grita. Tudo isso acontece em um ritmo que vai crescendo ao som de uma música erudita (uma alusão à família dos vizinhos que ouvem música orquestrada muito alta, são cultos, mas não se entendem), em que eclode o sentimento de incomunicabilidade entre todos os membros da família. Até que a Mãe, finalmente, toma para si a responsabilidade:
Mãe: (digna, surpreendentemente forte) NINGUÉM VAI MATÁ-LO. ESSA É A NOSSA REALIDADE. TEM COISAS QUE NÃO SE MATA. TEM COISAS QUE FORAM FEITAS PARA SE VIVER COM ELAS. ESSA É NOSSA REALIDADE, NÃO SE ARRANCA A COLUNA POR CAUSA DA DOR NAS COSTAS, O GRANDE BICHO VAI CONTINUAR AQUI, NESSA CASA, DENTRO DE NÓS. DENTRO DE NÓS. NINGUÉM VAI MATÁ-LO. TEM COISAS QUE FORAM FEITAS PARA SE VIVER COM ELAS. TEM COISAS QUE FORAM FEITAS PARA SE VIVER COM ELAS. TEM COISAS QUE FORAM FEITAS PARA SE VIVER COM ELAS. TEM COISAS QUE FORAM FEITAS PARA SE VIVER COM ELAS. (p. 62-63, maiúsculas do original)
Assim como em Por Elise, na fala da Mãe, a repetição aqui ecoa nos sentidos do espectador e essas “COISAS QUE FORAM FEITAS PARA SE VIVER COM ELAS” assumem conotações múltiplas em nossa contemporaneidade, assim como a lama que vai “sujando” o figurino dos atores/personagens aos poucos ao longo do espetáculo e ao final toma conta de todo o palco e se converte em um macrossigno que pode ser lido a partir de distintas perspectivas: o desencontro dessa família retratada em cena, as dificuldades de relações na nossa contemporaneidade, esse “hipopótamo” que temos que “engolir” em nosso cotidiano – que cara/rosto ele representa/tem?…
A trilha sonora nos dois espetáculos é fundamental para propiciar a reflexão diante os olhos da plateia. Se, em Por Elise, a música de Beethoven aciona um memória coletiva do público; em Amores Surdos, nos minutos finais, depois de todos se enfrentarem e, pela primeira vez, se olharem verdadeiramente, a Mãe traz para a cena um balde, panos de chão e vassouras e os entrega para Graziela e Joaquim, que começam a limpar o chão, enquanto Samuel continua implorando, do lado externo do apartamento, para entrar (o lar aqui, ainda que desestruturado, como já foi explicitado, é o único lugar onde ele se sente “seguro”). É introduzida a música “Pérolas aos poucos”[1], de José Miguel Wisnik, e, nesse momento, todos tentam organizar o espaço como se fosse possível reorganizar as suas vidas. Diante do caos instaurado em cena, a personagem Pequeno cresce; talvez, o único sujeito daquela família que tem a sua identidade tocada, aquele que passa por um processo real de transformação, e o grande signo desta transformação são os sapatos.
O menino calça o seus sapatos pela primeira vez. E, calçado com os seus sapatos, faz o seu ritual de sapateado. Durante todo o espetáculo a família, simulando uma aparente harmonia realiza um ritual de café-da-manhã ao som de uma música, onde a Mãe e os filhos Samuel, Joaquim e Graziele dançam sapateado enquanto Pequeno toca o seu piano de calda construído com o seu jogo de peças de montagem de madeira. A Mãe grita pelo pai Vicente, chamando para unir-se à família para o ritual do café da manhã. Tudo isso revela a potência do ato final da personagem ao calçar os sapatos e realizar o seu solo de sapateado .
Por fim, ao final da encenação, o telefone toca e Pequeno se dirige à plateia dizendo: “Vocês, por favor, já podem ligar seus celulares. Alguém pode estar chamando por vocês, e isso é muito importante.” (p. 64) O telefone toca insistentemente… As palavras-“oráculo” de Joaquim se cumpririam?…
REFERÊNCIAS
PASSÔ, Grace. Amores Surdos. Rio de Janeiro: Cobogó, 2012
PASSÔ, Grace. Por Elise. Rio de Janeiro: Cobogó, 2012
PAVIS, Patrice. Teatro Pós-dramático. In: BAUMGÄRTEL, Stephan e CARREIRA, André. Nas fronteiras do Representacional: reflexões a partir do termo “Teatro Pós-Dramático”. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2014. p. 9-23.
[1] Eu jogo pérolas aos poucos ao mar/ Eu quero ver as ondas se quebrar/ Eu jogo pérolas pro céu/ Pra quem pra você pra ninguém/ Que vão cair na lama de onde vêm// Eu jogo ao fogo todo o meu sonhar/ E o cego amor entrego ao deus dará/ Solto nas notas da canção/ Aberta a qualquer coração/ Eu jogo pérolas ao céu e ao chão// Grão de areia/ O sol se desfaz na concha escura/ Lua cheia/ O tempo se apura/ Maré cheia/ A doença traz a dor e a cura/ E semeia/ Grãos de resplendor/ Na loucura// [eu jogo ao fogo todo o meu sonhar/ eu quero ver o fogo se queimar/ e até no breu reconhecer/ a flor que o acaso nos dá/ eu jogo pérolas ao deus dará]
MARCOS ALEXANDRE é doutor em Letras pela FALE-UFMG, bolsista do CNPq e professor Associado da FALE-UFMG, na graduação e na pós-graduação.
Direção: Rita Clemente
Dramaturgia: Grace Passô
Atores: Assis Benevenuto (Joaquim), Grace Passô (Mãe), Gustavo Bones (Pequeno), Marcelo Castro (Samuel) e Mariana Maioline (Graziele)
Atores da Primeira Formação: Paulo Azevedo (Pequeno) e Samira Ávila (Graziele)
Consultoria Dramatúrgica: Adélia Nicolete
Assistente de Direção: Mariana Maioline
Cenografia: Bruna Christófaro
Iluminação: Cristiano Araújo e Edimar Pinto
Figurino: Paolo Mandatti
Trilha Sonora: Daniel Mendonça
Direção Vocal: Babaya
Preparação Vocal: Mariana Brant e Camila Jorge
Preparação Corporal: Dudude Herrmann e Izabel Stewart
Coreografia/Professor de Sapateado: Eurico Justino
Técnico e Operador de Luz: Edimar Pinto
Cenotécnico: Joaquim Silva
Costureiras: Mércia Louzeiro e Ireni Barcelos
Produção: Aline Vila Real
Realização: Grupo Espanca!
Classificação: 12 anos
Duração: 60 minutos
Espetáculo realizado com o Prêmio Estímulo às Artes – Auxílio Montagem – da Fundação Clóvis Salgado – Palácio das Artes – 2005
Amores Surdos estreou dia 24 de março de 2006 no Auditório Bento Munhoz da Rocha Neto – Guairão, em Curitiba, Paraná.
2015
Dezembro
– Nova Dramaturgia da Melanina Acentuada – Ocupação Teatro Dulcina. Rio de Janeiro, RJ.
Setembro
– Auditório CONFA – mostra PLATÔ no Festival Internacional de Teatro de Manizales, Colômbia.
Agosto
– PLATÔ (Plataforma de Internacionalização de Teatro) – programação da Rede Via Dupla no Teatro Espanca!. BH, MG.
Julho
– Teatro Diego Rivera – Festival Temporales Teatrales. Puerto Montt, Chile
– Centro Cívico Mirasol – Festival Temporales Teatrales. Puerto Montt, Chile
Maio
– curta temporada no teatro do SESC Ipiranga – Mostra Espanca! 10 anos. São Paulo, SP.
2014
Setembro/Outubro
– Espanca! 10 anos – temporada no CCBB-BH. Belo Horizonte, MG.
Abril
– Festival Iberoamericano de Teatro – Fundación Gilberto Alzate Avendaño. Bogotá, Colômbia.
2012
Novembro
– Temporada no Centro Cultural Banco do Brasil – projeto “espanca! Temporada RJ”. Rio de Janeiro, RJ.
Julho
– 25º Inverno Cultural – Teatro Municipal. São João Del Rey, MG.
Maio
– Sala Verdi. Montevideu, Uruguai.
2011
Dezembro
– Arte no Centro – temporada no Teatro espanca!. Belo Horizonte, MG.
Junho
– Teatro Municipal Usina Gravatá – Agenda 2011. Divinópolis, MG.
Maio
– espanca! em cartaz – temporada no Teatro espanca!. Belo Horizonte, MG.
2010
Agosto
– Festival de Teatro de Fortaleza – Theatro José de Alencar. Fortaleza, CE.
Março/Abril/Maio
– Viagem Teatral SESI-SP – Birigui, Marília, São José do Rio Preto, Franca, Araraquara, Rio Claro, Piracicaba, Itapetininga, Sorocaba, São Bernardo do Campo, Santo André, Mauá, São José dos Campos, Santos e São Paulo.
2009
Setembro
– Espanca à Mostra – Teatro do Oi Futuro. Belo Horizonte, MG.
Agosto
– Teatro em Movimento – Teatro Zélia Olguin. Ipatinga, MG.
Julho
– Teatro Municipal de Sabará, MG.
2008
Novembro
– Prêmio Cena Minas – Teatro Municipal de Nova Lima, MG.
– Festival Teatro Vocacional – CEU Cidade Dutra – São Paulo, SP.
Setembro
– Porto Alegre em Cena – Teatro de Câmara Túlio Piva. Porto Alegre, RS.
Agosto
– Cena Contemporânea – Centro Cultural Banco do Brasil. Brasília, DF.
Junho
– FIT – Festival Internacional de Teatro Palco e Rua – Teatro Dom Silvério. Belo Horizonte, MG.
Março
– Curta temporada no Teatro Francisco Nunes – Belo Horizonte, MG.
Janeiro/Fevereiro
– Temporada no SESC Av. Paulista – São Paulo, SP.
2007
Novembro
– Festival Recife do Teatro Nacional – Teatro Hermilo Borba Filho. Recife, PE.
Outubro
– Temporada no Teatro da Caixa – Rio de Janeiro, RJ.
Julho
– Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto, SP.
– Festival de Inverno de Ouro Preto e Mariana – Fórum das Artes – Ouro Preto, MG.
Junho
– FILO – Festival Internacional de Teatro de Londrina – Teatro Marista. Londrina, PR.
Março
– VerãoArteContemporânea – Temporada no Teatro Francisco Nunes – BH, MG.
Fevereiro
– Campanha de Popularização do Teatro e da Dança – Temporada na Sala João Ceschiatti do Palácio das Artes – BH, MG.
2006
Novembro
– Teatro Encontro.Com – Sala João Ceschiatti do Palácio das Artes – BH, MG.
Outubro
– Riocenacontemporanea – Teatro Sérgio Porto. Rio de Janeiro, RJ.
Setembro
– Curta temporada no SESC Pompéia – São Paulo,SP.
Julho
– Curta temporada no Teatro da Caixa – Curitiba, PR.
Maio
– Temporada na Sala João Ceschiatti do Palácio das Artes – BH, MG.
Março
– Estréia nacional – Mostra Oficial do Festival de Teatro de Curitiba. Auditório Bento Munhoz da Rocha Neto – Guairão. Curitiba, PR.
PRÊMIOS:
– Vencedor do Prêmio Usiminas-Sinparc/MG 2006 – melhor texto inédito.
– Vencedor do Prêmio Usiminas-Sinparc/MG 2006 – melhor atriz (Grace Passô).
– Indicado ao Prêmio Qualidade Brasil 2008 – São Paulo – nas categorias Melhor Espetáculo Teatral Drama, Melhor Ator Teatral Drama (Paulo Azevedo), Melhor Atriz Teatral Drama (Grace Passô) e Melhor Direção Teatral Drama.
– Indicado ao Prêmio Shell – edição São Paulo – nas categorias Melhor Dramaturgia, Direção e Cenário 2008.
– Indicado a melhor espetáculo adulto, direção, ator (Paulo Azevedo), ator coadjuvante (Marcelo Castro), cenário e criação de luz no Prêmio Usiminas-Sinparc/MG 2006.