Uma década de reinvenção e de relação com a cidade
1 set 2014
PUBLICADO EM 31/08/14 – 03h00
LUCIANA ROMAGNOLLI
ESPECIAL PARA O TEMPO
Num fim de tarde deste mês de agosto, enquanto o Espanca! ensaiava no palco do Teatro Alterosa o novo espetáculo, “Dente de Leão”, que estreará no dia 10 de setembro no Centro Cultural Banco do Brasil, os rostos e corpos que se viam em cena já não eram os mesmos que se costumou associar à imagem do grupo mineiro. Apenas Gustavo Bones permanece. Marcelo Castro migrou para a plateia, de onde dirige a montagem. Alexandre de Sena e Glaucia Vandeveld retomam a parceria travada em “Congresso Internacional do Medo” e há três novos colaboradores: Lira Ribas, Raysner de Paula e Gabriela Luiza.
Que Espanca! é esse? Um grupo mutante, transformado ao longo do tempo pelas saídas de Samira Ávila, Paulo Azevedo e, mais recentemente, de Grace Passô, mas que sempre buscou novos parceiros e ideias, e se reinventa agora, ao celebrar dez anos, cada vez mais político e conectado à realidade urbana de Belo Horizonte.
“Dente de Leão” carrega no título uma possível metáfora, elemento fundamental na dramaturgia do grupo. Desta vez, porém, quem a assina é Assis Benevenuto (integrante do Quatroloscinco e ator da nova formação de “Amores Surdos”). A peça coloca em cena três adolescentes, seus pais e professores, às vésperas da feira de ciências da escola. Os traços surreais presentes nos trabalhos anteriores dão lugar a um subtexto mais claramente politizado, enquanto a problematização da própria situação teatral, também sempre presente, reflete os modos como os papéis sociais se distribuem na vida.
“A peça é a extensão no tempo de como a gente vai aprendendo a interpretar e como a gente se constitui representando papéis”, comenta o ator Gustavo Bones. Hoje, o núcleo de criação do grupo é formado por ele, Marcelo Castro e a produtora Aline Vila Real, cercados por uma rede ampla de colaboradores.
“A primeira coisa que marca o Espanca! é um olhar poético perante a realidade”, constata Luiz Fernando Marques, diretor do Grupo XIX. “O Espanca! sempre teve uma dosagem muito interessante entre o lírico e o real. E existe uma pertinência na forma como eles pensam teatro além das obras, com um pensamento amplo de arte”, comenta o paulista.
Urbano.
No início de sua trajetória, o grupo mineiro passou menos tempo em Belo Horizonte do que em viagens, impulsionado pela fama dos dois primeiros espetáculos – “‘Por Elise’ foi aquele fogo de artifício enorme”, metaforiza a ex-integrante Grace Passô. “A relação era sempre de dívida com a cidade”, segundo Marcelo Castro. Isso se transformou vertiginosamente com a abertura da sede na rua Aarão Reis, em 2010. “Decidimos ir para o centro para que a cidade interferisse na gente. E foi o que aconteceu. Alterou nosso modo de pensar e a estética do grupo”, constata o ator.
“Seja com os integrantes do Duelo de MCs, seja com outros artistas e eventos de BH, seja ao trazer espetáculos de outras cidades e criar novas trocas, o Espanca! também se torna, a partir da sede nova, um mediador cultural”, identifica a crítica de teatro Julia Guimarães, “no rastro, quem sabe, do que fez o Galpão através do Cine Horto”. Ela cita a idealização de eventos e a cessão do espaço para a Janela de Dramaturgia e a Mostra.Lab como exemplos de ações, e ressalta, a partir disso, o contato do grupo com a cultura urbana e com movimentos de valorização do espaço público partilhado socialmente.
Essa mudança de cenário coincidiu justamente com uma guinada mais política, que desembocou na criação da cena curta “Onde Está o Amarildo?”, em 2013, e agora em “Dente de Leão”. Não bastasse, o Espanca! já aprovou no edital do Rumos Cultural a montagem para 2015 de “Real: Uma Revista Política”. “Acho que a cidade está mais política e nós somos reflexos disso. Fomos nos transformando em agentes políticos”, diz Bones. “Começou a ser difícil ignorar tudo à nossa volta”, comenta Castro.
“A poesia e a linguagem se contaminam pela cidade”, concorda Luiz Fernando Marques, rememorando a última experiência que teve na sede do Espanca!, durante o Acto 3. “Foi incrível, ficamos apenas observando pela porta, como se fosse uma grande tela, a cidade acontecendo”, diz.
Mudanças. A abertura para novos parceiros, como Marques, foi paulatina. “Amores Surdos” teve direção de Rita Clemente. “Congresso Internacional do Medo”, a participação de atores e bailarinos convidados. “Marcha para Zenturo” foi criada em parceria com o Grupo XIX. E “Líquido Tátil” teve texto e direção do argentino Daniel Veronese. “Todos os trabalhos da companhia de alguma forma foram saltos. Sempre fomos um grupo em formação, essa é uma maneira de conseguir amadurecer mesmo tendo iniciado com uma peça de sucesso. É preciso trabalhar muito para isso não boicotar o amadurecimento artístico”, diz Grace.
A saída da dramaturga, atriz e diretora, no ano passado, ainda gera expectativas sobre o caminho que os mineiros trilharão. “É evidente a ancoragem de Grace no grupo por transitar singularmente pelas funções. Vendo-a em cena é como se constituísse ela mesma a melhor tradução do que sua escrita imagina. Por outro lado, sempre restou clara a contribuição decisiva dos integrantes para semear ideias e forjar o pensamento artístico”, observa o crítico paulista Valmir Santos.
Para ele, a capacidade de lidar com substituições e novas adesões configura uma visão “menos romântica do teatro de grupo”. “Desligamentos temporários, migrações ou fusões são dinâmicas cada vez mais comuns entre os coletivos. Às vezes isso deságua em processos de liquefação ou muita solidez”, observa.
Diante da primeira experiência sem Grace, o crítico vê boas possibilidades. “No caso da cena curta ‘Onde Está o Amarildo?’, as perspectivas de que o sopro inventivo não diminuiu são alvissareiras. Tomara que a nova montagem também assim se confirme”, espera.