Um piscar de olho sereno e revolto
26 ago 2014
Um piscar de olho sereno e revolto
Duas cenas curtas balizam a identidade artística do grupo espanca! construída ao longo de sua primeira década.
Em 2004, Por Elise, título homônimo do espetáculo desdobrado no ano seguinte, surpreende e encanta pela exposição de um sistema cênico aparentemente simples ancorado em requintada elaboração das escritas de texto, de cena e de atuação. Essa rara conjunção, almejada por todo criador atilado, finca raízes sob as mãos e pensamentos de moças e rapazes que, intuímos, não pactuam de largada a ambição de revolucionar a morfologia do teatro. Antes, jogam abertamente com os rastros existenciais, as inspirações artísticas embrionárias de suas escolas livres ou formais e a sincronia de época com outros pares inclinados à pesquisa permanente na capital mineira ou alhures. Condensação estilística e moldura poética inatas fixam a inquietação como princípio.
Na outra ponta da linha do tempo, a peça curta Onde está Amarildo?, de 2013, abre flanco para a investigação do real em cena. Vem espargir crueza em termos de conteúdo e de estrutura plasmando o mal estar da sociedade diante da violência urbana e de estado, o limiar das manifestações de massa em junho orientadas pelo sentido de justiça nas diversas variantes da cidadania. O transe capturado não é só o do país, mas também o da própria constituição do espanca!, mobilizado pela saída de uma de suas forças-motriz, a atriz, dramaturga e diretora Grace Passô, enveredada por demandas pessoais e profissionais apesar de ter lugar cativo nos elencos dos quais participou, na medida das possibilidades das agendas.
Prospecções sociais, políticas e biográficas à parte, ou melhor, entranhadas, a linguagem jamais resulta obliterada em Onde está Amarildo?. Tortura e desaparecimento como motes de enredo, personagens de contornos realistas misturados a figuras fantasmais e armários de aço como móbiles cenográficos catalisam as infiltrações ficcionais dessa síntese indignada e alegórica.
A Mostra que neste segundo semestre de 2014 aporta quatro espetáculos do grupo evidencia as bases desse percurso. Por Elise, óbvio, por embrião e assentamento do projeto artístico. Amores surdos, de 2006, montagem assinada por Rita Clemente, pelo tônus que redimensiona a extraordinária fruição da obra seminal. Reflexo de encontro feliz e parturiente, por assim dizer, com uma encenadora ousada e condizente para alicerçar a natureza febril de Gustavo Bones, Marcelo Castro, Paulo Azevedo, Samira Ávila e Passô, a mesma formação original de Por Elise (ambos os espetáculos incorporam atores substitutos nos últimos anos).
O líquido tátil, de 2012, reúne os cofundadores Bones, Castro e Passô em novo mergulho sem rede: intercâmbio com Daniel Veronese, o argentino autor do texto e convidado a dirigir o grupo de Belo Horizonte do qual provavelmente nunca ouvira falar. A reciprocidade de risco faz com que Veronese, ícone do teatro de pesquisa portenho, um dos responsáveis pelo lendário conjunto El Periférico de Objetos, recebesse o trio de atores em seu estúdio, em Buenos Aires, bem como se permitisse conhecer a cidade dos brasileiros que abraçaram sua peça de 1997.
Suspeitamos o quão Veronese teria ficado boquiaberto ao saber do interesse de um grupo do país vizinho em levar à cena uma obra dos anos de 1990 que radica essencialmente as autorreferências da cultura teatral, em especial aquelas de sua Buenos Aires e, em particular, a reverência ao dramaturgo russo Anton Tchekhov (1860-1904) que sorverá como nunca nas criações da década seguinte e soa mais subliminar na metalinguagem do que seu colega italiano Luigi Pirandello (1867-1936) em Seis personagens em busca de um autor, por exemplo.
Quanto a Dente de leão, que debuta na Mostra, ainda sabemos pouco no ato destes apontamentos, a dois meses e meio da estreia. Mantém a inquietude em torno do real e espreita questões relativas à educação, mais um dos paroxismos do Brasil contemporâneo de economia emergente e de misérias latentes. A dramaturgia concebida pelo integrante do grupo Quatroloscinco – Teatro do Comum, o ator e pesquisador Assis Benevenuto (que já atuara em Amores surdos), denota afinidade geracional e obstinação pela teatralidade, premissa histórica no espanca!
O privilégio de acompanhar a gênese e o desenvolvimento de jovens artistas nos faz pensar nos parâmetros da brevidade. A excitação das primeiras produções e a convicção das últimas compreendem um piscar de olho sereno e revolto nessa travessia. Como se os dez primeiros anos aqui celebrados equivalessem à cena curta das vidas que enredam. Dez anos curtos e curtidos.
Em tempo: 1) curiosamente, a imagem do animal no título da nova obra ecoa as “presenças” dos cães em Por Elise e O líquido tátil, além do hipopótamo em Amores surdos. Donde os instintos falam forte nos fundamentos técnicos e estéticos do grupo. 2) é preciso observar que tanto Congresso internacional do medo (2008) como Marcha para Zenturo (2010), este em inspirada parceria com o Grupo XIX de Teatro, de São Paulo, são trabalhos modelares de como o espanca! consegue medir as temperaturas sociopolíticas e comportamentais do presente sem reduzir-se à mensagem em si, estimulando o espectador à leitura cúmplice; à contrapartida da arte em levantar perguntas e não certezas.
Valmir Santos, jornalista, pesquisador e crítico teatral