Textos dos Criadores
6 jun 2011

espanca!
Este espetáculo se ergueu a partir da leitura de contos de autores latino-americanos identificados com o chamado realismo fantástico, ou maravilhoso. Esses contos nos levaram a uma reflexão sobre as identidades da América Latina, o que forma um sentimento, uma sensação de pertencimento a essas terras tão calorosas. Concretamente, o que vocês verão são cenas inspiradas em Propriedades de um Sofá e Fábula Sem Moral, textos de Júlio Cortazar, Borboletas de Koch, de Antonio di Benedetto, Me Alugo Para Sonhar e no prólogo de 12 Contos Peregrinos, ambos de Gabriel Garcia Márquez.
Durante o processo, vivemos com os atores a experiência de um grupo de teatro, cotidianamente. E acreditando que isso também é pedagógico, compartilhamos o dia-a-dia de nossa companhia para além da criação artística e técnicas de atuação: a estrutura do grupo, os projetos, planejamentos, e também as discussões, reflexões, trocas para a construção coletiva de um pensamento de teatro.
Aos formandos, diríamos que o mais importante não é o teatro. É o que nos faz ir até ele, o desejo de buscar uma expressão, de traduzir em signos determinada sensação. Mais importante do que o teatro é ritualizar a convivência, transformá-la em afeto e diálogo, através do respeito ao outro, ao diferente e do respeito ao próprio teatro. Acreditamos que essa busca é que nos fará seguir caminhando, escaldados pelo Sol de nosso chão, construindo, através de nosso ofício, um espaço para a resistência. Aprendemos com nossos antepassados que resistir é prosseguir cantando, transformando nossos ritos a partir do contato com o outro, para além do além-mar, acima das naus, por cima do torturador, dos patrões, dos deuses e das tribos inimigas. Esse projeto nos mostrou como resistir, resta-nos fazer isso em coro.
Ainda sobre nosso espetáculo, gostaríamos de dizer que a fantasia está em nossa vida, não há como negá-la. Conviver com o fantástico é nossa tarefa mais prazerosa, uma maneira de se posicionar diante da realidade. E a morte, embora difícil, é aquilo que nos faz questionar o próprio viver. Ela é, pois, o alimento de nossos sonhos, tão tropicais.
formandos
Tudo começou com um desejo, um sonho. Um processo de criação ousado: montar um espetáculo com criação coletiva baseada no encontro entre um grupo de teatro e nós, alunos. A proposta foi lançada pelo Espanca!. Estávamos todos lá: atores, diretores, professores. Estava claro desde o inicio que o sonho era coletivo, e esse sonhar coletivo era nossa meta. Já no primeiro dia saltamos juntos no desafio, que às vezes duvidávamos ser realidade. Sair juntos e chegar juntos. E para isso precisávamos nos olhar, olhar além dos olhos, falar de nossos pesadelos. Estávamos todos atentos aos nossos medos, olhares, histórias, e por que não, as nossas histórias latinas. E de repente a pergunta foi feita: nos reconhecemos como latino-americanos? A resposta não viria assim tão fácil. O jeito era abrir nosso peito, colocar nossos corpos no espaço e sentir. Alguma coisa já estava acontecendo. E como num sonho, onde o tempo brinca e o caos ensina, o delírio estava lá. Estávamos todos lá. Sim, Delírio em Terra Quente é um delírio coletivo, se é que é possível pensar assim. E talvez essas duas palavras – delírio e coletivo – sejam bastante significativas não só para pensar o nosso processo de construção do espetáculo, mas também o fazer teatral (e claro, os três anos de convivência) e, quiçá, toda a formação identitária da América Latina. Opa! Devagar com as generalizações, que a América Latina é um mundo gigante, híbrido, com várias identidades, línguas, culturas. Pretenso projeto esse de tentar entender qual ou quais seriam as identidades latinas… Mas os contos de Gabriel Garcia Márquez, Jorge Luiz Borges, Júlio Cortazar, entre outros autores, nos amparavam, nos fortaleciam. Então mergulhamos em um universo fantástico, que de repente descobrimos ser maravilhoso, e chegamos ao nosso próprio lar. Construímos estereótipos, personagens-tipo, figuras, e de repente percebemos que éramos nós mesmos. Porque, afinal, falar de delírio em terra quente é falar de nossos próprios delírios, de nossa própria terra. Então, falamos de nós. Sim, somos latino-americanos. Porque, para nós, como para Cortazar, “a realidade é uma realidade onde o fantástico e o real se entrecruzam, cotidianamente”. E Borges dá a saída: “aceitar o sonho como aceitamos o universo, olhar com olhos e respirar”. E foi assim, nunca esquecendo de respirar juntos, que chegamos aqui, neste delírio, neste calor coletivo, nesta terra quente de nossos sonhos.