Textos dos criadores
6 jun 2011

Alexandre de Sena
Gláucia Vandeveld
Grace Passô
Gustavo Bones
Isabel Stewart
Nadja Naira
Renato Bolelli
Alexandre de Sena:
Primeira.
Segunda.
Terceira.
Nos reencontramos e reconhecemos aqui. Neste espaço branco como nos meus sonhos de infância. Árvores, lago, céu, pedras e animais, tudo branco. Neste meu sonho, reeditado e revivido, novamente sonho com uma igualdade inalcançável. Sons que surgem de uma canção igualmente perdida dentro de nossos corpos mudos indicam que o caminho pode ser percorrido… Com calma. Mansidão. Nossas tentativas colorem de branco esta lousa alva. O tempo passava e nós aumentávamos. Ultrapassamos duas mãos. Nossa paisagem a cada dia, incrivelmente mais clara. Para tentar entender o que não se pode querer, somente se entende, fui céu, som, tecido, água, formiga, penas, capacete, cordas… Fomos todos. Uma pitada de tudo. Tudo para aumentar o branco de nossa paisagem. Passamos pelo teste do jornal em branco, das idéias em branco e dos bolsos sem cor. Penso. Colorimos todo dia nossa paisagem. Tenho vivido a alegria de recordar meu sonho de moleque. De vivê-lo acordado. Tendo esta oportunidade, decidi hoje colorir o interior do meu sonho. De vermelho sangue. De quando cortamos nossos membros para nos livrar da dor, de quando perdemos nossos membros e ganhamos um brilho no céu, de quando rasgamos o nosso coração e damos lugar a outras meias para aquecer nossos pés, de quando trocamos nossas letras para sermos mais, maiúsculos. como aqueles que me deram a luz, que nos deram a luz e a plataforma. re-sonho. somos membros que atravessam a nata e descobrem o líquido que ela escondia. vermelho. e debaixo desta nata somos todos habitantes daquela pequena ilha, que percorre o mundo e busca, incansavelmente, a igualdade. que tanto sonho, que tanto busco.
Gláucia Vandeveld:
Tradutora.
Como “traduzir em palavras” as sensações vivenciadas no processo de criação do “Congresso”?
Costumamos dizer que a criação, na sala de ensaio, é o momento mais rico e desafiador de todo processo artístico. É onde podemos dar asas a todas as possibilidades, arriscar sem “medo”.
A recepção carinhosa e envolvente de todos, o interesse verdadeiro, me deram a certeza de que ali naquela sala, já se configurava um processo que viria a se transformar numa experiência enriquecedora e coletiva.
Experimentar sensações, criar situações, vivenciar idéias, abraçar propostas, avaliar erros e acertos, definir temas, o que dizer? como dizer? enfim, encontrar nossos caminhos…
Inúmeras dúvidas nos provocavam, trabalho árduo mas intensamente prazeroso, desafios superados graças a generosidade de todos os envolvidos no processo.
Partilhamos angústias, dores passadas e presentes, nos tornando cada vez mais íntimos; brincamos, nos divertimos, rimos muito… muito. E como acontece no “Congresso”, fomos nos tornando cúmplices, co-responsáveis pelo resultado de nosso trabalho.
Ainda estamos em processo, descobrindo coisas novas todos os dias e sempre. Porque é dessa forma que nos sentimos mais vivos.
Obrigada a todos os Espancados,
Gláucia.
PS: Escrevi minhas impressões no plural porque em momento algum desse trabalho me senti só!!!
Grace Passô:
“Congresso Internacional do Medo” foi uma criação muito rica. E eu sempre suspiro quando os Congressistas filosofam entre si, sussurrando, para não acordar a criança:
“Nágoras disse que a vida é uma grande epifania com pausas gigantescas.
Hiócoles disse que o medo é a véspera da coragem.
Fartre escreveu que o segredo da vontade de viver está dentro de um ovo. Bem como nós.
Putdjawa me disse um dia que a felicidade mora no olho de uma onça. E que a gente, pra ser feliz tem que olhar no olho dela”.
Gustavo Bones:
E NÃO HÁ MELHOR RESPOSTA QUE O ESPETÁCULO DA VIDA
Essa história começou muito antes desse processo. Há muito, conversávamos sobre línguas inventadas, sobre diversidade cultural, sobre como subverter a formalidade de um Congresso. Grace me disse um dia que queria fazer uma peça em que ela escreveria apenas o subtexto dos atores. E que eles inventariam o que dizer. Olha que subversão! Encontrei hoje em meu celular, mensagens que trocamos no mês de agosto de 2005:
Bones: E se no Congresso tivesse um espaço pra perguntas do público que os atores respondessem na hora, de improviso?
Passô: Já vi que a cervejinha com a Tia vai durar muito…
Bones: E se o mediador do Encontro tivesse uma crise de pânico na hora da abertura? Medo de estar em público.
Passô: Adorei, putz! Ele inclusive pode fazer xixi nas calças, debaixo da mesa.
Essas idéias iam permeando nossas conversas, nossas viagens, nossas cervejas. E quando precisávamos nos reencontrar, chamamos um tanto de gente para criar conosco esse Encontro. Aos poucos eles chegaram – cada uma num ritmo, numa freqüência. Vinham de lugares distantes, desconhecidos. Trouxeram um pegador, carregaram uma mesa, me ensinaram uma língua, trocaram meu chuveiro, fizeram uma fogueira e nos esquentaram muito. Fomos cultivando um telhado/antiquário com um enorme balão, produtos Avon, uma peruca de índia, uma tartaruga chamada Paúra, um peixe chamado Procópio, vozes da organização, uma esposa traidora, empadinhas de bobó de camarão, um grupo de dança folclórica, uma música da Nação, alguns hinos nacionais e até um mosquitinho. Tanto que quando giramos a plataforma, já éramos uma família.
Enquanto formávamos essa tribo, a morte nos visitou e foi muito difícil. Sempre é difícil tê-la por perto. Como a febre. E logo nos primeiros rituais, a vida nos respondeu com uma explosão severina: chegou o Davi, primeiro filho do espanca!. Nós vivemos juntos o ciclo natural da vida. E não há proximidade maior que essa. Não há teorema, lei, axioma, tese, teoria que explique o sentimento de vida. O desejo de vida contido no nascimento e na morte também. Então, durante o Congresso, nosso discurso fez-se. Diante de nós. A vida foi muito maior. Nosso conhecimento foi pouco. Nossa técnica foi pouca. Foi mínima, diante do que a vida nos disse:
“E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
mesmo quando é a explosão
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida severina.”
(João Cabral de Melo Neto – Morte e Vida Severina)
Nunca dediquei um trabalho a alguém. Mas em se tratando do Congresso, torna-se impossível não fazê-lo, me desculpem. Este trabalho é dedicado aos meus pais (pela possibilidade de sonhar em outras línguas) e aos meus irmãos (porque a morte não é o contrário da vida). Y a dotos mustedes, Goncresistas-Tafores, chumas grafias.
Isabel Stewart:
…
Dos medos mais privados aos mais coletivos, do medo de galinha ao medo de sentir medo, muito foi pesquisado e discutido durante a montagem do “Congresso Internacional do Medo”. Mas talvez o mais desconcertante tenha sido a experiência do fim: a vida empurrou a morte pra dentro da sala de ensaio de forma tão contundente que me fez sentir medo. Nada de novo sobre nossa condição fugaz no mundo. O que assusta é a indiferença do tempo, que segue independente da nossa presença ou não em seu curso.
A idéia de extinção, de esgotamento, de morte, marcaram todo o processo. Eu me revirei em índia Payá. Ou melhor: em última sobrevivente de um povo. Ao lado do meu irmão Trumak, formamos uma tribo de dois. Somos os últimos, mas não os únicos: outros quatro falam dos mesmos assuntos, com histórias diferentes.
O tempo escuta, mas não pára.
“O correr da vida, embrulha tudo,
A vida é assim…
Esquenta, esfria, aperta e daí afrouxa,
Sossega e depois desinquieta,
O que ela quer da gente,
É coragem…”
(Guimarães Rosa)
Mar à vista.
Mar alto.
Uma arca à deriva num oceano branco. Nela estão cinco exemplares de anônimos de lugares diversos, tentando se equilibrar sobre o convés estreito, para não caírem na imensidão pálida. Restos de pele e floresta. Uma tradutora faz a ponte num bote de rodas. Dois peixes-tempo circulam ao redor.
Mar costeiro.
Um falatório quase interminável. Espécie de congresso flutuante, onde cada marinheiro tenta lançar sua garrafa ao mar, com a esperança de que sua história seja capturada em alguma margem.
Oceano Pacífico.
A água que banha a nau, de tom incrivelmente asséptico, parece não oferecer perigos.
Mar morto.
Até ela surgir filtrada, derramando sua cor mais pura: vermelho-grosélia.
Mar mexido.
Nau desgovernada. Onde está o comandante? Quem dirige o leme?
Pleno mar.
Uma nova vida nasce a bordo. Um bebê, sem falar, muda o rumo da viagem.
Mar de rosas.
A tradutora abandona seu bote de rodas e junta-se aos outros na embarcação. Os tripulantes se reúnem à mesa como uma família. São nomeados: Dr. José, Tusgavo, Tradutora, Reluma e Tusgavito, Trumak e Payá. Foto para a posteridade.
Mar de lama.
Morre a tradutora. Suas últimas palavras são gravadas no horizonte. A comunicação fica comprometida. Quem navega afinal?
Mar aberto.
Os passageiros se voltam para contar o medo ao bebê.
Além mar, os peixes continuam seu curso.
Nadja Naira:
Um grupo de teatro mineiro me chamou pra fazer a luz pra uma Peça de Teatro, cheguei lá em Belo Horizonte era um Congresso, quando começamos as reuniões de criação de cenário, era uma Ópera e de repente tinham uns bailarinos em cena…
E tudo começava assim: “Qual cisne branco em noite de lua…”
Foram dias e dias e noites e noites de montagem de um grande puzzle de peças de tamanhos estranhos e arestas esquisitas, mas num clima tranqüilo e muito, muito caloroso, amoroso e tolerante. Passamos por terras de sonhos, mares de sal grosso, fizemos fogueiras, brincamos de historinhas infantis, fizemos discursos, compartilhamos nossos medos, choramos.
E finalmente, eis aqui nosso CIM, oui, yes, ya, sim, mis…
Ainda ficou faltando a coreografia inicial com os cisnes brancos da Marinha do Brasil…
Renato Bolelli:
CONGRESSO INTERNACIONAL DO MEDO É UMA EXPERIÊNCIA INTENSA
Quando iniciamos as conversas sobre o projeto, pensava-se em encenar o espetáculo num heliporto. Imagine minha surpresa. E a partir daí deu-se a gestação de algo que abarcasse uma diversidade imensa de informações e ao mesmo tempo pudesse preservar sua liberdade.
Países imaginários, pessoas imaginárias, modos e costumes que começamos a imaginar também. Como lidar com isso? O formato espacial de um congresso, a dificuldade de construir uma cena estática, mesa, cadeiras, palavra, água. O vazio.
Fundos possíveis, imaginados, e algo que surgia com a formalidade do encontro entre estranhos. Cada universo, cada ilha em si, deveria dialogar, buscar construir um território entre. Mesa, cadeiras, palavra, água. O vazio e com ele a cor branca. E assim uma paisagem anulada, devastada, concretizava-se. Podemos imaginar que a espacialidade do espetáculo é dada pela presença da cor, mas também pela ausência de paisagem.
Comecei a me interessar pelos processos de transformação da natureza. Escavação, extração, refinamento. A matéria orgânica até chegar como produto no supermercado. Devastação do mundo, de suas fontes: comida, vestes e conforto como atestado da morte na natureza? O vazio era senão o esgotamento dos recursos. A água de peixes impossíveis, a água de beber, água de matar, a água humana mas a água é do mundo e não do homem.
Seguindo nas correntes ditas evolutivas, o homem apinha-se em mesas, em seus bancos de saber científico, em cadeiras universitárias entre tantas outras e tenta nadar em meio ao que criou. Saídas possíveis? Recomeço ou continuidade? O medo é uma invenção.