O posicionamento da linguagem, por Diogo Liberano

Estou em plena criação de um texto para um novo projeto do grupo espanca! de Belo Horizonte/MG. É uma resposta dramatúrgica a um fato ocorrido na história recente do Brasil. A criação desta resposta dramatúrgica está sendo, talvez, a coisa mais difícil já enfrentada por mim no exercício da dramaturgia.

Estou em plena criação de um texto para um novo projeto do grupo espanca! de Belo Horizonte/MG. É uma resposta dramatúrgica a um fato ocorrido na história recente do Brasil. A criação desta resposta dramatúrgica está sendo, talvez, a coisa mais difícil já enfrentada por mim no exercício da dramaturgia. E é uma resposta porque o mote de partida foi uma pergunta muito afirmativa: o link de um vídeo que apresenta, durante quase dois minutos, uma mulher sendo linchada por seus vizinhos (todos eles, os agressores, eram homens).

O que responder, dramaturgicamente, a este tipo de fato? A este tipo de acontecimento já nascido e consumado em nossa própria sociedade? O que parece determinante fazer saltar de uma cena que nasce de um crime que se desdobra para além do crime? Um crime que revela e denota a perdição da condição humana do ser humano?

Volto-me à emergência e, talvez, à necessidade de oferecer a tal poética (a tal criação que o homem foi capaz de concretizar), volto-me a certa poética negativa (FLORES, Lívia), capaz de fazer frente ao que foi transformado em fato. Parece-me necessário não ressaltar a dor e o horror da situação, não ressaltar a violência e a crueldade, mas sim algo menos niilista, algo menos distópico. Ou seja: a dramaturgia pode ser o contrário do que o mundo assina como possibilidade, como acontecimento, como fato. A dramaturgia pode provocar o mundo lá onde ele já seu resignou como mundo terminado.

Mas, como enxergar algum pedaço de utopia nessa violência toda? Penso apenas em como continuar. Como se continua? Uma família que perde a sua mãe, linchada por vizinhos e que, mesmo assim, precisa continuar. Como se continua? Com que força? Munido de quais habilidades? Eu queria que a dramaturgia fosse capaz de oferecer algum antídoto, algum antivírus para tamanha boçalidade do homem contemporâneo.

Então preciso escrever para dois destinos: o da ficção e o da realidade. O da ficção é essa situação entre esse pai e suas filhas, continuando na medida do impossível e transcendendo a miséria humana na qual foram inseridos e da qual participam. E o outro destino é meu espectador: tensionar a sua tolerância frente ao horror de nosso tempo e fazê-lo trepidar ante a tanta maldade concentrada (e, de maneira distanciada, pela ficção apresentada) para, em seguida, se possível, comover-se com as possibilidades que a obra de arte é capaz de oferecer à vida: algum cuidado, alguma gentileza.

Por isso um jogo de criança me veio como maneira única de lidar com peças e engrenagens tão grandes. O jogo da criança como maneira de profanar (AGAMBEN, Giorgio), jogar com o absurdo da realidade. Pensei num jogo em casa. Jogado num domingo, talvez, numa data comemorativa. O dia em que se completa tanto tempo da morte da mãe. O pai com as filhas em casa, após tomar café, tentando sentir a vida de volta, testando a vida, tentando continuar… E uma das filhas o chama para brincar e ele aceita. E ele a faz convidar a outra filha, menor, bem menor. E o jogo é esse: o de perguntar e responder. E as perguntas, porém, não são sobre curiosidades do mundo, não são sobre mistérios e fantasias, as perguntas só podem ser sobre aquilo que passou a virar suas vidas: a morte da mãe, a crueldade do homem, a presença irrevogável e incontornável da incompreensão frente à desmedida do homem.

Comecei a escrever a cena enquanto tomava banho. Não tinha como sair correndo debaixo d’água, com o cabelo cheio de shampoo, e então deixei a cena escorrer cabeça afora. Depois, com ligeira calma, me sequei e liguei o computador. E escrevi uma ou outra fala, umas quatro ou cinco. Passou um dia, eu sequer me permitindo achar nada sobre o que tinha escrito, e voltei ao mesmo arquivo. Escrevi mais outras coisas. E assim está sendo. Diariamente eu pergunto e respondo. Ou só pergunto. Ou só respondo. Continuo até hoje sem texto escrito, mas há uma estrutura invisível que se anuncia sorrateiramente. Há um propósito ali naquele arquivo. Não há sequer chegada prevista. Mas há uma linguagem que vai se forjando em falas tão curtas que, quando sobrepostas, parecem formar estrofes nervosas e revoltosas, revoltadas, estrofes querendo do mundo alforria à vida.

A importância da linguagem, se é que assim posso chamar. A importância da linguagem menos como estilo e mais como, desde sempre, algum posicionamento enquanto autor frente ao desafio que me desorienta. E então penso: que jogo é esse que a dramaturgia começa a propor e como posso jogá-lo, sem fingimento? Como eu, que invento o jogo, posso me permitir me perder nele? E então estou indo fundo num buraco imenso. Estou dialogando, por Facebook, com o marido da mulher que foi morta após o linchamento. Estou lhe fazendo perguntas e recebendo respostas que me assustam porque, de fato, abrem voçorocas, espaços imensos, vazios intolerantes ao preenchimento. E, sendo a vida, por vezes, esse inexprimível, a arte então vai ser o quê?

Volto-me a Bertolt Brecht e me acalmo, por um dia que seja, ao reconhecer que “só poderemos descrever o mundo atual para o homem atual, na medida em que o descrevermos como um mundo passível de modificação”. Como continuar? Eu, em dramaturgia, seguirei tentando. O marido e sua família, em vida, não tenho dúvida, continuando também estão. E é nessa tentativa de não abandonar a vida que a dramaturgia se encontra com o Real.

 

Diogo Liberano