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discurso sobre o nada – Marcio Abreu

Discurso sobre nada

 (uma mulher sobre um pequeno palco redondo; uma luz cafona sobre ela)

 Eu procurava um título pra começar. Algum nome, um pedaço de frase, uma palavra qualquer. Pra começar a dizer pra vocês. Ou melhor, pra começar a escrever o que eu deveria dizer pra vocês. Ou melhor, pra começar a escrever o que eu deveria falar, não dizer, falar. Com vocês, não pra vocês. Isso. Eu procurava um título pra começar a escrever o que eu deveria falar com vocês esta noite.

 Não há nome, nenhuma palavra. Apenas vocês, eu e essa expectativa. Eu poderia começar a falar, então, com vocês essa noite, sobre essa expectativa. Afinal, sobre vocês e sobre mim, isso já é outra história. Sobre vocês e sobre mim, isso… (silêncio)… eu tive um branco… agora, verdade, eu tive um branco (silêncio; ri). Horrível. Eu sempre imaginei ter brancos em situações extremas como esta. Diante de pessoas que têm certa expectativa. Eu sempre i ma gi nei (ri; silêncio).

 Eu imagino que vocês esperem alguma coisa de mim. Que, pelo menos esta noite, vocês esperem alguma coisa de mim. Sim, a expectativa. É sobre o que poderíamos falar esta noite. Não sobre esperanças, isso já é outra história. Não sobre esperanças, isso… as esperanças (silêncio; ri). Eu não tive um branco, não agora, não eu não tive um branco, não se preocupem. Não outro. Eu estou plenamente consciente deste momento entre nós. Eu me preparei. Eu pensei nisso o dia todo, nessa expectativa. Eu acordei com esse susto. E uma sensação clara de lucidez que desapareceu logo em seguida, como é de costume acontecer. Não só comigo! É de costume acontecer. Não é assim com vocês? É assim com todo mundo. Num instante saímos do sono, tudo é claro, a gente acha que entende tudo, mas isso desaparece logo em seguida (silêncio; ri; silêncio). Eu tive um branco (ri). Sério. É sério, eu esqueci o que eu estava dizendo. Meu deus, não é brincadeira! Onde eu estava mesmo? Eu fico aqui diante de vocês, a gente se olha, vocês são muito simpáticos, obrigada por terem vindo, a noite está linda (olha em direção à janela), sim a noite parece estar linda, e eu dizia…

 Sim eu dizia que eu tinha me preparado pra esta noite. Sim, vocês devem ter reparado na minha roupa. Eu escolhi o que vestir. A gente escolhe o que é mais adequado pra uma ocasião como esta. Não apenas o adequado, mas algo mais. Algum charme, algum traço de sedução. Um brilhozinho, sem cair na armadilha da vulgaridade. Uma cor nos lábios, discreta. Os olhos, as sobrancelhas, as maçãs do rosto, o cabelo. Sim o cabelo arrumado como se ao acaso, tentando mostrar certa naturalidade (ri), e o perfume. O perfume que fica (sai; volta). Sentiram? O perfume que fica (desce  do pequeno palco; abraça um homem da platéia). Está sentindo? O perfume fica. Durante esta noite  o sr se lembrará de mim. E sua mulher também se lembrará de mim quando olhar pra você. Mais ainda quando se aproximar de você. Ela vai sentir o cheiro doce deste perfume barato, porque é o que eu uso, perfume barato. Vocês não se importam com isso, não é verdade? Perfume barato (abraça uma mulher da platéia). E o sr também se lembrará de mim quando se deitar a noite ao lado  desta mulher, quando beijar o pescoço dela, quando esfregar a tua barba nos seios dela enquanto ela grita de prazer acordando os vizinhos. E sua mulher em casa, assistindo um filme antigo depois de se esfregar na banheira tentando, sem sucesso, esquecer o cheiro do perfume.

 Um copo! Seja lá o que for, só é possível seguir se eu tiver um copo! Numa noite como esta, cercada por pessoas tão simpáticas, só é possível seguir se eu tiver um copo. Um copo! (entra um garçom). Enfim, eu aproveito este momento em que estamos juntos, nesta noite de celebração, para erguer um brinde… ao que resta de nós. Isso! Ao que resta de nós, porque eu imagino que não estejamos todos aqui por inteiro. Um brinde ao que resta de nós! Sem nenhum constrangimento, porque eu sei que não estamos aqui por inteiro. É facilmente perceptível! Não é necessário ser vidente (ri). Quem aqui saiu de casa e trouxe consigo tudo aquilo o que é, tudo o que é, de verdade? Quem? Quem saiu de casa e veio mostrar sua alma transparente? Quem? Quem veio nú? Pra ocasiões como esta a gente se prepara. A gente escolhe a roupa adequada e o perfume. Quem veio aqui sem nenhuma expectativa? Quem não quis aqui encontrar alguem ou alguma coisa que lhe tirasse a poeira dos ombros? Que mostrasse uma luz no fim do túnel? Que desse um pouco de cor aos dias cinzas? Alguem ou alguma coisa que transformasse essa sequencia interminável de dias tediosos em entusiamo.

 (silêncio; sobe no pequeno palco; copo na mão; olha o público)

 Eu imagino (silêncio). Eu imagino que esta noite deveria ser dedicada a homenagear alguem que tivesse uma história. Eu tenho uma história. Esta noite é portanto dedicada a mim. E é sobre a minha história que eu deveria falar com vocês esta noite. Isso é sobre mim, sobre vocês e sobre a expectativa. Isso é claro. É sobre mim, sobre vocês e sobre a expectativa (começa a cantar uma canção nostálgica de época). Eu começava com esta canção e logo a luz mudava e eu dizia: (tenta dizer um trecho de uma cena clássica de teatro, erra e esquece a cada frase). Eu dizia… como era mesmo? Eu dizia… Sim, eu me lembro… (ri) Eu me lembro, eu vou tentar mais uma vez (silêncio; ri; silêncio) Eu me lembro que quando eu era pequena e meu pai estava chateado com alguma coisa, ou que tinha brigado com minha mãe, ou que tinha recebido uma notícia muito ruim, ele sempre colocava uma musica: pra mudar de clima. Então, como dizia meu pai, em situações difíceis, na minha infância, eu digo agora: música pra mudar de clima! (entra a mesma música que ela cantarolou antes; ela desce do palco com um sorriso forçado e mistura-se ao público)

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