Dia 12 de agosto, meu filho, um adolescente de 17 anos, saiu de casa para participar de uma manifestação na Praça Sete. Contra o aumento ilegal do transporte coletivo. Saíram ele, meu sobrinho querido da mesma idade e muitos amigos deles, que vivem aqui na minha casa, fazendo macarrões pela madrugada, se arrumando para os rolés no viaduto de Santa Teresa ou para o Chorinho na Serra. Confesso que me encho de orgulho. Não se arrumam para cantar “sou brasileiro com muito orgulho, com muito amor” e nem pintam a cara de verde e amarelo segurando cartazes “Contra tudo isso que está aí”. Me encho de orgulho também porque, nos anos 80, era eu quem saia de casa, com bandeira em punho e gritando palavras de ordem para exigir um país, uma Belo Horizonte mais humana, mais justa. Meus amigos e eu ocupamos a Escola de Direito, a praça Sete, o bandeijão da Arquitetura, tentamos salvar o cine Metrópole, descemos a Afonso Pena tantas vezes, de uma forma tão apaixonada, alegre e irreverente, igualzinho os meninos que saíram do colégio, naquele dia 12 de agosto, para mais uma manifestação na nossa cidade. Mas, achava eu, havia uma diferença. Apesar de muito ainda por lutar, eles não seriam covardemente agredidos pela polícia fascista, não precisariam temer o ataque traiçoeiro das bombas de gás, das balas de borracha e bombas de efeito moral que, naquele fim melancólico da Ditadura, teimavam em participar dos nossos encontros.
Busquei meu filho em um hospital da cidade. As costas feridas por tiros de um tal projétil de elastômero, a velha e conhecida bala de borracha! Aguardando, em um banco do atendimento de urgência, assustado e incrédulo, pelo primo que levou dois pontos na cabeça, atingido pelo mesmo tipo de arma “não letal”. Seguimos para um Hotel no Centro da Cidade para tentar localizar um dos amigos, menor de idade, preso! Detido! Pela polícia do governo “democrático e popular”. Meu olhar, desesperado e atônito, encontra, dentro de um dos dois ônibus carregados de jovens, cercados por camburões do “batalhão de choque”, o olhar firme, forte e determinado de um dos meninos que frequentaram minha cozinha. Ergueu um dos braços para mostrar “as algemas”. Um jovem, dezoito anos comemorados há alguns dias, “al-ge-ma-do” porque estava se manifestando!
Ontem, vagamos durante horas pela Defensoria Pública, Ministério Público – Núcleo de Direitos Humanos, Instituto Médico Legal. Ouvimos depoimentos chocantes e revoltantes: “põe a fêmea no banco da frente”; “cala a boca porque sua macheza acabou agora”; “vagabundo que não trabalha tem mais é que tomar tiro na cara”; “agora é direitos iguais pra todos. Tá todo mundo em cana”… Assistimos juntos aos vídeos que estão nas redes sociais e comentamos: “essas aí, gritando debaixo da marquise, somos nós, tia Mônica”; tá vendo esse carinha na bicicleta? Então, olha a gente aqui do lado”; “olha, a gente tá virando neste momento, para liberar a pista e, do nada, tá vendo? Começaram os tiros”! Compartilhamos nossas fotos de celulares: furos profundos nas pernas, nas coxas, na fronte, a poucos milímetros dos olhos, dos ouvidos. Feridas feitas por “armas não letais”. Os relatos: “então, eu estava fora da manifestação, filmando tudo. Os cara me jogaram no chão, me imobilizaram, com chave de braço e depois pisando nas minhas costas. Eu, completamente imobilizado, e eles apertaram até o talo o spray de pimenta na minha cara”. “Mãe, foi do nada. Não teve esse negócio de pedra. Tava todo mundo de boa”; “Tia Mônica, eu deitado no chão, dentro daquele hotel, e eles pisaram nas minhas costas!” Ninguém quebrou nada naquele hotel. A gente entrou pra fugir das bombas que arregaçavam a galera. A polícia entrou quebrando geral, jogando bomba, jogando gás”. Ouvimos essas e muitas outras histórias, repetidas com mais detalhes, refazendo, rememorando, retomando para tentar entender. Nos emocionamos e rimos muito, rimos da truculência deles, da ignorância, da insensatez, da falta de delicadeza, da inconsistência dos argumentos toscos. E nos sentimos mais fortes, porque dos risos vieram a certeza de que estamos juntos e de que somos muito diferentes deles.
Hoje, abri aquilo que eles insistem em dizer que é um jornal, mas que todos sabemos que é o diário oficial dos “coxinhas” belorizontinos. Estava estampado na primeira página: “Pimentel: ‘PM agiu dentro do protocolo”. Pois então, Fernando, esse é exatamente o problema. A gente queria uma PM que quebrasse esse protocolo. Que construísse um protocolo alicerçado nos princípios de um Estado verdadeiramente de Direito, numa sociedade em que a polícia, se ela continuar a existir, se paute na garantia incondicional dos direitos e, sobretudo, na garantia da igualdade de todos diante dos direitos.
Fernando, o direito de livre manifestação não poderia ser compatível com a sua “intolerância à agressão a agentes públicos no exercício de sua função”. Sabe por quê? Porque não houve agressão a esses agentes. Pelo menos, não houve agressão por parte do meu filho, do meu sobrinho, dos meus amigos, daquele senhor que foi detido no hotel e estava vendendo pão, daquela professora de história, daqueles estudantes. Esses estavam no seu direito de ir e vir ou no exercício do seu direito de se manifestar. Mas, também não poderia ser compatível, por que, esses agentes não estavam no exercício de sua função. A função deles não é a de humilhar, não é a de agredir, de insultar, de interditar as vias públicas com camburões, tropas de choques, bombas, balas, projéteis.
Só para terminar, acho que caberia de sua parte, um pedido de desculpas ao meu filho, ao meu sobrinho, aos meus amigos, ao povo de Belo Horizonte, porque você errou no seu depoimento e errou também na ação, porque se mostrou, sobretudo neste episódio, incompetente para honrar com a causa pela qual lutamos, no passado, junto com tantos, como o saudoso Dr. Celio de Castro. Fazer de BH uma cidade mais humana. Impossível, Fernando, sem mudar essa polícia comandada por esses que se mostraram tão autoritários quanto aqueles que nos agrediram, há alguns anos atrás, nas mesmas ruas de BH, pelas mesmas causas, pelos mesmos sonhos.
:: vídeo do Lucas Morais :: foto do Jornalistas Livres