testemunhas do caso Amarildo também estão desaparecidas

No dia em que a tortura e morte do pedreiro Amarildo Dias de Souza completa dois anos, a pergunta “onde está Amarildo?” pode ser estendida a duas testemunhas consideradas fundamentais na investigação que levou à Justiça 25 policiais militares da UPP da Rocinha.

RIO — No dia em que a tortura e morte do pedreiro Amarildo Dias de Souza completa dois anos, a pergunta “onde está Amarildo?” pode ser estendida a duas testemunhas consideradas fundamentais na investigação que levou à Justiça 25 policiais militares da UPP da Rocinha. Lúcia Helena da Silva Lima e Wellington Lopes Silva estão desaparecidos. Ambos afirmaram, em depoimentos gravados, terem recebido dinheiro do então comandante da unidade, major Edson dos Santos, para acusar traficantes pelo sumiço do pedreiro.

A família de Lúcia Helena chegou a recorrer à Divisão de Homicídios (DH), onde registrou o desaparecimento dela em meados do ano passado. No caso de Wellington, não há registro formal dando conta de seu sumiço. Porém, os dois não foram mais vistos na Rocinha. As testemunhas deveriam ter sido ouvidas novamente na Auditoria de Justiça Militar e, sobretudo, na 35ª Vara Criminal, onde os PMs estão sendo julgados por crimes de tortura, ocultação de cadáver, formação de quadrilha e fraude processual. Dos 25 policiais denunciados, 13 estão presos.

Lúcia Helena vivia há 43 anos na Rocinha. Ela trabalhava como diarista e se viu envolvida na história de Amarildo por causa do filho. À época, X. era um adolescente de 16 anos, que foi detido por uso de drogas na mesma noite em que Amarildo foi levado por policiais militares à sede da UPP, na localidade conhecida por Portão Vermelho. Dias após o episódio, o major Edson dos Santos teria procurado a mãe de X., oferecendo-se para pagar o aluguel de um imóvel à família, fora da comunidade.

NOVOS DEPOIMENTOS

A oferta do oficial foi inicialmente aceita pela moradora, que teria recebido R$ 850 para acusar o traficante Thiago da Silva Neris, o Catatau, pela morte de Amarildo, em depoimento na 15ª DP (Gávea). Já Wellington teria aceitado R$ 500 para confirmar a versão criada pelo comandante da UPP da Rocinha. Contudo, com o desenrolar das investigações na DH, Lúcia Helena e Wellington voltaram atrás e, em novos depoimentos gravados, confirmaram aos investigadores e aos promotores do Ministério Público estadual que o major havia dado dinheiro à dupla para tentar encobrir o envolvimento de PMs no crime.

Com o desaparecimento das duas testemunhas, o promotor Homero das Neves teve que prestar depoimento na Auditoria de Justiça Militar, confirmando ter presenciado os testemunhos de Lúcia e de Wellington. O processo na auditoria militar acabou confirmando, em abril passado, que o major Edson dos Santos, o tenente Luiz Felipe de Medeiros e os soldados Newland de Oliveira Júnior e Bruno Medeiros Athanásio tiveram participação no pagamento de propina aos dois moradores com o objetivo de obstruir as investigações da DH.

SESSÃO DE TORTURA É DESCRITA EM RELATÓRIO DE 389 PÁGINAS

A sessão de tortura que resultou na morte de Amarildo Dias de Souza na noite de 14 de julho de 2013, na parte de trás do contêiner da UPP da Rocinha, é descrita em detalhes nas 389 páginas do relatório com as alegações finais dos promotores do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público estadual. Com base em depoimentos — seis deles de PMs que trabalhavam no setor administrativo da unidade — o documento estima em 40 minutos o tempo de martírio a que foi submetido o pedreiro.

Amarildo foi levado à sede da UPP da Rocinha às 19h30m, após ter sido detido no Bar do Júlio, próximo à Rua Dois. A chegada do pedreiro é descrita por uma das policiais militares, que diz ter visto um homem pardo sendo retirado da patrulha do soldado Douglas Vital. Ele estava com as mãos algemadas para trás e foi levado aos fundos de um dos contêineres, num local geralmente usado para reparos nos veículos da PM.

MOMENTOS DE AGONIA

Naquele instante, por ordem do comandante da unidade, major Edson dos Santos, os policiais que atuavam nas atividades administrativas teriam sido orientados a permanecer no interior de um dos contêineres. De lá, segundo promotores, eles puderam ouvir os momentos de agonia do pedreiro, que levou choques elétricos e foi espancado e asfixiado com um saco plástico, método de tortura que ganhou notoriedade no filme “Tropa de elite”, que retrata a formação de policiais do Batalhão de Operações Especiais (Bope).

Os gritos de Amarildo levaram às lágrimas pelo menos três policiais impedidas de sair do contêiner. Em depoimento, uma delas chegou a dizer que não queria mais ficar na corporação: “O que fizeram com esse homem não se faz a um animal”, disse a agente. Em outro relato, outra policial diz ter ouvido: “Não, não, isso não. Me mata, mas não faz isso comigo”. Pouco depois, Amarildo silenciou.

Os gritos cessaram e por dez minutos, segundo depoimentos dos PMs, nenhum som foi ouvido no interior do contêiner. Logo em seguida, de acordo com promotores, o major Edson abriu a porta da unidade, dando ordem para que todos do setor administrativo fossem embora. Nesse momento, um soldado apanhou uma capa de moto e a levou para a parte de trás da unidade.

A ação sobre o desaparecimento de Amarildo tramita na 35ª Vara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio. Segundo o TJ, o juiz Tiago Fernandes de Barros já realizou a instrução do processo, abrindo prazo para apresentações das alegações finais da acusação (Ministério Público) e da defesa dos réus, que ainda não apresentaram as suas considerações. Dos 25 PMs denunciados, 17 deles o foram por tortura e ocultação de cadáver, 13 por formação de quadrilha e quatro por fraude processual. Treze dos PMs, entre eles os dois oficiais, aguardam o julgamento na prisão.

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